Ninguém sabe ao certo os caminhos
da paixão, muito menos quão sinuosos e improváveis eles são. Após encontrar Henry
Miles (Stephen Rea), marido de sua ex-amante, vagando desconsolado abaixo de
chuva, o escritor Maurice Bendrix (Ralph Fiennes) retoma o contato com ela,
Sarah (Julianne Moore), de quem havia se separado há dois anos. Rever o amor
perdido é como ter reabertas as feridas até então em processo de cicatrização.
Subir as escadas da casa conhecida remete às primeiras carícias, ao sexo feito
na clandestinidade onde depois nasceu um sentimento cujo tamanho e força não deixam
enquadrá-lo nos habituais “certo” e “errado”. O cineasta Neil Jordan, em Fim de Caso, reafirma o interesse tanto
na dualidade humana, quanto na erupção dos desejos, sobretudo os avassaladores
que não permitem muita resistência.
O cenário é Londres em plena
Segunda Guerra Mundial, cidade sitiada por bombardeios, em permanente tensão. As
sirenes que alertam a população para a iminência de ataques aéreos servem
inusitadamente ao amor de Bendrix e Sarah. Acompanhamos tudo em retrospectiva, enquanto
o escritor datilografa, conforme definição própria, seu “diário de ódio”. Ele não
sabe se odeia o marido, a mulher ou a ele mesmo, mas tenta entender e aliviar
esse sentimento transpondo-o ao papel. Idas e vindas temporais, reminiscências
mesclando-se a acontecimentos presentes, fatos vistos de ângulos diversos, formam
uma construção narrativa engenhosa, cujo maior mérito é evidenciar os desvãos que
fazem equivalentes a geografia interna dos personagens e a paisagem externa em
conflito bélico.
A câmera de Jordan é elegante,
passeia por uma Londres antiga, reconstruída minuciosamente para a transposição
do livro homônimo de Graham Greene ao cinema. Não bastasse alterar
violentamente o ambiente, a Guerra ainda é responsável por algo que influencia de
maneira direta e decisiva a trama, dando-lhe contornos ainda mais dramáticos.
Promessas precisarão ser cumpridas, sobretudo as feitas a Deus, ainda que o
credor onisciente, onipresente e onipotente, seja causa e solução, simultaneamente.
Fim de Caso pode soar moralista, pois
investe algumas de suas fichas mais altas num diálogo entre fé, milagre, pecado
e salvação. Contudo, proponho que percebamos tal exploração como parte de um embate,
criado por Greene e reverberado por Jordan, que choca a divindade clássica e
seus desígnios, tão misteriosos quanto castradores, com a própria ideia do amor
não submetido ao moralismo. Portanto, se Deus é amor, onde há amor, em tese,
não há pecado.
O amante, cego de ciúmes,
intermedia investigação da qual será conscientemente objeto, à medida que o marido
se resigna à dependência da mulher. Sarah, por sua vez, divide-se entre culpa e
desejo. Fim de Caso é um filme
complexo, onde as pulsões dos personagens aparecem como elementos inerentes à
constituição humana, partes indissociáveis de nossa falibilidade primal e
irrefreável. Mediadas pelo amor, ressurreição
(simbólica) e cura, a princípio atributos das divindades, podem, como fenômenos
perfeitamente instaurados na ordem do real, advir de uma “pecadora”, cuja
danação decorre não do adultério, como muitos gostariam de supor, mas da
fidelidade quase irrestrita às suas promessas.
Publicado originalmente no Papo de Cinema
Boa, Celito!
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