terça-feira, 21 de outubro de 2014

Fim de Caso


Ninguém sabe ao certo os caminhos da paixão, muito menos quão sinuosos e improváveis eles são. Após encontrar Henry Miles (Stephen Rea), marido de sua ex-amante, vagando desconsolado abaixo de chuva, o escritor Maurice Bendrix (Ralph Fiennes) retoma o contato com ela, Sarah (Julianne Moore), de quem havia se separado há dois anos. Rever o amor perdido é como ter reabertas as feridas até então em processo de cicatrização. Subir as escadas da casa conhecida remete às primeiras carícias, ao sexo feito na clandestinidade onde depois nasceu um sentimento cujo tamanho e força não deixam enquadrá-lo nos habituais “certo” e “errado”. O cineasta Neil Jordan, em Fim de Caso, reafirma o interesse tanto na dualidade humana, quanto na erupção dos desejos, sobretudo os avassaladores que não permitem muita resistência.

O cenário é Londres em plena Segunda Guerra Mundial, cidade sitiada por bombardeios, em permanente tensão. As sirenes que alertam a população para a iminência de ataques aéreos servem inusitadamente ao amor de Bendrix e Sarah. Acompanhamos tudo em retrospectiva, enquanto o escritor datilografa, conforme definição própria, seu “diário de ódio”. Ele não sabe se odeia o marido, a mulher ou a ele mesmo, mas tenta entender e aliviar esse sentimento transpondo-o ao papel. Idas e vindas temporais, reminiscências mesclando-se a acontecimentos presentes, fatos vistos de ângulos diversos, formam uma construção narrativa engenhosa, cujo maior mérito é evidenciar os desvãos que fazem equivalentes a geografia interna dos personagens e a paisagem externa em conflito bélico.

A câmera de Jordan é elegante, passeia por uma Londres antiga, reconstruída minuciosamente para a transposição do livro homônimo de Graham Greene ao cinema. Não bastasse alterar violentamente o ambiente, a Guerra ainda é responsável por algo que influencia de maneira direta e decisiva a trama, dando-lhe contornos ainda mais dramáticos. Promessas precisarão ser cumpridas, sobretudo as feitas a Deus, ainda que o credor onisciente, onipresente e onipotente, seja causa e solução, simultaneamente. Fim de Caso pode soar moralista, pois investe algumas de suas fichas mais altas num diálogo entre fé, milagre, pecado e salvação. Contudo, proponho que percebamos tal exploração como parte de um embate, criado por Greene e reverberado por Jordan, que choca a divindade clássica e seus desígnios, tão misteriosos quanto castradores, com a própria ideia do amor não submetido ao moralismo. Portanto, se Deus é amor, onde há amor, em tese, não há pecado.

O amante, cego de ciúmes, intermedia investigação da qual será conscientemente objeto, à medida que o marido se resigna à dependência da mulher. Sarah, por sua vez, divide-se entre culpa e desejo. Fim de Caso é um filme complexo, onde as pulsões dos personagens aparecem como elementos inerentes à constituição humana, partes indissociáveis de nossa falibilidade primal e irrefreável.  Mediadas pelo amor, ressurreição (simbólica) e cura, a princípio atributos das divindades, podem, como fenômenos perfeitamente instaurados na ordem do real, advir de uma “pecadora”, cuja danação decorre não do adultério, como muitos gostariam de supor, mas da fidelidade quase irrestrita às suas promessas.


Publicado originalmente no Papo de Cinema

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