segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Doses Homeopáticas #30


CHEF é um arroz com feijão bem temperado. Conhecemos o percurso do cara que afunda no ego, que deixa o próprio talento e a obsessão pelo trabalho cegá-lo quanto às outras coisas importantes da vida, e que logo vai ter de começar de novo. Mas aqui, além do diretor John Favreau fazer um filme que pega a gente pelo estômago – e dá uma fome danada ver o preparo dos pratos -, há um acerto de contas que desloca ligeiramente o mais óbvio, ou seja, a frustração pessoal que logo se transforma num novo sucesso, direcionando o filme à reconciliação familiar na viagem pelos EUA que fará, finalmente, pai conhecer filho e vice-versa. Tudo caminha para um final feliz, como manda o figurino. Fica a sensação de provar um prato caseiro, que a gente já comeu diversas vezes, mas ao qual sempre volta, porque além de familiar, o gosto é bom.


Saí da sessão de A PEDRA DE PACIÊNCIA com a sensação de ter visto algo muito forte do ponto de vista cinematográfico. A protagonista encara praticamente sozinha a dureza do dia a dia de bombardeios e a criação das filhas, já que o marido está quase em estado vegetativo após levar um tiro. A partir de seus relatos para esse ouvinte imóvel, que involuntariamente assume papel de confessor ou analista, a gente passa a entender melhor a opressão da mulher muçulmana, já que temos exemplificadas as convenções sócio-religiosas que institucionalizam sua inferioridade. A encenação se atém ao básico, a fazer da protagonista um símbolo do sofrimento feminino cotidiano no Oriente Médio mais extremista, ainda que conserve a dimensão muito particular de sua história. O homem ali prostrado, quem sabe, representa a inércia fundamentalista, cuja desculpa maior é a tradição. A mulher, pelo contrário, é uma força incontrolável, que burla como pode o sistema cruel para viver com o mínimo de dignidade.


Assim como na maioria dos filmes de David Fincher, em GAROTA EXEMPLAR a investigação principal é apenas uma autoestrada pela qual trafega o comportamento humano em suas mais diversas facetas. Com a habilidade de sempre, o cineasta conduz o inquérito mais como desculpa para deter-se neste ou naquele personagem, para estudar condutas (às vezes extremas) pouco ortodoxas. O marido realmente matou a mulher ou tudo não passa de um mal entendido? Da força dessa incerteza calculada que permeia o filme se incumbe a direção de Fincher, empenhada em ressaltar a ambiguidade dos olhares, dos movimentos, a inflexão suspeita de uma fala qualquer. A violência é muito mais psicológica que gráfica, as instituições são questionadas a todo instante, bem como a verdade, esta que pode tanto ser fabricada por advogados, visando uma boa imagem na televisão, quanto dissimulada no dia a dia para dar a (falsa) impressão de felicidade. Um filme, em última instância, sobre o conflito entre o parecer e o ser.

2 comentários:

  1. Show, Celito.
    Obrigado pelos breves, porém enriquecedores textos.

    Grande abraço.

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  2. Olá, Rafa

    Assista os três quando puder, principalmente esse A PEDRA DE PACIÊNCIA, um filmaço.
    Abraços e obrigado pela leitura.

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