quarta-feira, 4 de setembro de 2013

CINEMA A DOIS | OS DAVIDS - História Real e eXistenZ


David Lynch pinta História Real, filme baseado em fatos, com tintas absolutamente minimalistas e traços naturalistas muito menos delirantes que os característicos ao surrealismo, inerente à maioria de seus filmes. Então próximo do cotidiano, o diretor opera num registro menos onírico, ainda que tenda a impregnar situações e objetos com sua inconfundível atmosfera. Na trama, Alvin Straight é idoso, campesino e tipificado, levado em meio ao descuido pelos vícios da vida. Sua obstinação aparece justo ao ser confrontado por situação-limite e, mesmo soando frio, sem tanto entusiasmo, ele percorrerá a estrada tão cara a Lynch para fazer valer princípios afetivos. As vicissitudes humanas são exploradas de maneira bastante reflexiva e existencial, sobretudo no que tange o envelhecer.

O ator Richard Farnsworth, protagonista de História Real, interpreta lindamente esse senhor de 73 anos, abalado ante a notícia do infarto sofrido pelo irmão com o qual não se comunica há 10 anos. Straight decide fazer viagem inusitada, percorrendo centenas de quilômetros num cortador de grama. A força motriz surge dos encontros, das pessoas sensibilizadas em contato com a história, tão estranha como bonita, de alguém que não poupa esforços para se reconciliar com o passado.  Lynch filma planos de duração estendida, minutos sem trégua na monotonia da vastidão desbravada lentamente, nos proporcionando embarcar nas lembranças detalhadas do velho homem rural, assim como nos saudosismos e nas relutâncias cotidianas, alimentos de sua amargura. Buscando o afeto perdido, o protagonista renova parte da vitalidade, até então em vias de esgotamento. 

Os games são, além de indústria poderosa e lucrativa, a possibilidade de ser quem não somos ou quem gostaríamos de ser. Em eXistenZ, David Cronenberg parte dos jogos eletrônicos enquanto simulacros, cuja exacerbação embaralha existências sólidas e fantasiosas irrealidades. Elevado à instância sacrossanta, pois assim como os mitos religiosos ajuda a mitigar a dureza de viver, o jogo é apresentado numa igreja por Allegra Geller, a maior programadora do planeta, espécie de semideusa aos viciados na fuga proporcionada pela virtualidade. Vítima de conspiração, ela foge com o estagiário de marketing, Ted Pikul, para salvaguardar sua mais nova criação, assim como o console feito de vísceras mutantes.

Nesse mundo onde há anfíbios geneticamente alterados, matérias-primas tanto de armas alimentadas por dentes humanos quanto de iguarias exóticas, pessoas se conectam ao virtual por meio de bio-portas instaladas na medula espinhal. Dentro do jogo, Geller e Pikul se verão cada vez mais enredados numa conspiração semelhante a do início, guerra declarada entre os partidários e os não-partidários da deformação sensorial ocasionada pelos games. O sumo de eXistenZ está na fragilidade do conceito de “verdade”, uma vez que nossa percepção surge de estímulos nervosos, estes passíveis de manipulação.

Se toda tecnologia é entendida como extensão do corpo, em eXistenZ ela amplia os limites mentais, paradoxalmente subvertendo-os. A única diferença latente entre mundo real e mundo virtual é o livre-arbítrio, conceito bíblico que designa nossa capacidade de escolha. Mas não estaria Cronenberg, através das interfaces entre religião e tecnologia, estreitando os dois níveis, justo ao aproximar o programador egoico de um Deus que nos guia certo por linhas tortas, ou seja, a seu bel prazer? Assim sendo, dentro do viés pessimista, fica mais difícil saber se estamos navegando na virtualidade ou à deriva nas instâncias concretas.

Difícil estabelecer pontes entre Historia Real e eXistenZ. Esforços nesse sentido apontam muito mais ao contrário, às diferenças. A maior delas talvez guarde relação com os modos de vida e o entorno onde as narrativas se desenvolvem. Se no filme de Lynch temos ambiente rural de preceitos tradicionais, no de Cronenberg tudo está diluído numa geleia-geral de contemporaneidade disforme e imprevisível. Enquanto o americano parece (aparenta) aquietar-se em terreno menos movediço, optando pelo humanismo e a linearidade, o canadense se embrenha ainda mais na dicotomia real/irreal, para isso utilizando a fertilidade dos jogos eletrônicos e os traços da juventude essencialmente digital e digitalizada.

Lynch se apoia no ator e faz dele a própria estrada por onde chegaremos ao conhecimento do personagem; já Cronenberg investe pesado na simulação, no embaralhamento, no meio como transformador psíquico/biológico do homem.

Por Ana Carolina Grether e Marcelo Müller

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HISTÓRIA REAL – Por Conrado Heoli 
E se a Walt Disney apresentasse um filme de David Lynch? Em 1999, tal questão aparentemente absurda foi respondida quando, após ser nomeado a uma Palma de Ouro em Cannes, o drama História Real foi lançado no mercado norte-americano pelo mesmo estúdio do Mickey Mouse. Também sem precedentes na carreira de Lynch é a classificação indicativa livre do filme, assim como o fato do cineasta não ter qualquer envolvimento direto com a produção de seu roteiro. Ainda que tais apontamentos pareçam depreciativos, História Real é um dos trabalhos mais tocantes de Lynch, repleto de nuances e emoções verdadeiras. 
David Lynch declarou que História Real é seu filme mais experimental, uma vez que o realizou independente e cronologicamente enquanto acompanhava a jornada de seu personagem no mesmo trajeto de 390km que Alvin Straight percorreu. Richard Farnsworth, indicado merecidamente ao Oscar por sua interpretação, e Sissy Spacek protagonizam a produção, que não revela traço característico algum das demais realizações de Lynch, porém sem sua assinatura dificilmente seria metade do filme que é. Pautado em ações e reações humanas cada vez mais raras na liquidez da contemporaneidade, Lynch revela em História Real que se o onirismo não fosse tão intrínseco à sua filmografia, sua obra provavelmente teria a mesma significância e permanência.

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eXistenzPor Achiles Miranda Dias


*Turn off your mind, relax and float down stream … 
Em um mundo capitalista, o desejo existe na realidade construída pelo capital, representado aqui pela produtora de games Antenna Research, sendo Allegra Geller sua designer-estrela. 
Em nossa realidade concreta, os corpos podem ser manejados de forma pragmática para uma conexão direta através de cabos e orifícios. Manejo este dessexualizado, pois a realidade que nos dá acesso ao desejo está do outro lado, no Virtual. 
Ted Pikul, virgem (desplugado) e inibido, precisa do suporte da Fantasia criada por Geller para poder expressar seu desejo. Fora do jogo, manifestava de forma dessexualizada sua“admiração” por Allegra. Dentro, rapidamente se vê lambendo orifícios e envolvendo-se amorosamente com a parceira. 
A Fantasia é o suporte do desejo, é a janela, palco, enquadre em que nosso desejo pode ser encenado. A Fantasia constrói nossos objetos de desejo, ela permite/ordena o desejo. A ideologia subjacente ao capitalismo segue a mesma lógica e cria os objetos e as subjetividades necessárias a sua reprodução. O frentista teve sua vida “transformada” por um game de Geller. E continua sendo um frentista solitário em um posto de gasolina no fim do mundo. Mas agora pode rejeitar sua vida “real” em favor de uma outra, “virtual”. Naquela ele é Deus, criador. Nesta, um oprimido disposto a matar seu ídolo por dinheiro. 
Duas séries perturbam o quadro. Os revolucionários/terroristas/rebeldes que querem o fim da virtualização da realidade operada pela “demoníaca” (demiúrgica?) Allegra Geller. É o debate no nível ideológico, que quer libertar a sociedade das ilusões do Virtual. No entanto, a liberdade não é uma opção, em nenhum dos níveis: 
PIKUL: É óbvio que  “livre arbítrio’ não é um fator importante neste nosso mundinho.
GELLER: É como na vida real. Há apenas o suficiente para torná-la interessante. 
A outra presença disruptiva são Esses Estranhos Objetos causa do Desejo. Carne, sangue, dentes, ossos. Corporificam, encarnam um Real para além da realidade. Objetos parciais, partes de corpos, gosma, apresentam o fracasso de toda busca de unidade, de unificação. São estranhos, deslocados, estão no lugar errado, aparecem de forma imprevista. 
Cronenberg os apresenta em grande parte de sua obra. Talvez permitam uma divisão cronológica de sua filmografia, visto terem desaparecido de seus últimos filmes. Spider seria então o filme-chave/único nesta perspectiva, em que o Real deixa de ser apresentado de maneira surrealista através destes objetos e seres e se torna interiorizado em um processo psicótico. E após Spider, Cronenberg parece buscar uma análise sociológica (notadamente em Cosmopolis), afastando-se de uma surrealista/psicanalítica. Mas em eXistenZ, ainda são estes Estranhos Objetos que nos atraem e incomodam... 
 *So play the game Existence to the end... 

 *Tomorrow Never Knows (Lennon/McCartney)

3 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Não recordava que este filme era o ESTRADA PERDIDA do Lynch... Gosto bastante! E gostei muito de ler os textos, mesmo não tendo visto ExistentZ.

    Achiles, adorei especialmente a referência aos Beatles... Amo!

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