terça-feira, 28 de abril de 2015

O Homem que Matou o Facínora


Distinto senador dos EUA, Ransom Stoddard (James Stewart) retorna meio incógnito à pequena Shinbone, cidade onde há muitos anos iniciou sua carreira política e de onde partiu famoso, não apenas por ter insistido na importância da lei e da ordem para a prosperidade, mas, e, sobretudo, por ser o responsável pela morte de Liberty Valance (Lee Marvin) o bandido mais temido das redondezas. O político veio prestigiar um funeral do qual quase ninguém tem notícia, nem mesmo o jornal local. O nome do morto que jaz num caixão simples pago pelo município é Tom Doniphon (John Wayne), quase um indigente, não fossem uns poucos cientes de sua existência e importância ao desenrolar de fatos cruciais. Interpelado pela imprensa, Ransom decide contar a história, a lenda que por sua força se viu publicada como verdade.

O Homem que Matou o Facínora (1962), dirigido por John Ford, é western inserido historicamente num momento de mudanças, no qual se passa a questionar a eficiência da força como maneira de cumprir a lei. Ransom é recebido a golpes de chicote ao chegar à cidade pela primeira vez e nem assim pensa em pegar em armas, pois acredita piamente na justiça como reguladora da sociedade. Já Tom, acostumado à lida do campo, tem as raízes no Oeste selvagem, via de regra onde cada um cobra suas dívidas e onde matar nem sempre é crime. Dois homens com maneiras muito distintas de encarar os problemas que acometem Shinbone e seus moradores. Enquanto o advogado, que lava pratos e auxilia no jornal já que a carreira no direito não deslancha, é um entusiasta da educação, o rancheiro prefere levar uma vida ainda calcada nos bons e velhos preceitos dos desbravadores.

O Homem que Matou o Facínora se passa numa era de transição, na qual palavras como voto e democracia passaram a fazer parte do cotidiano das pessoas. Também é imprescindível o papel da imprensa nessa trama. John Ford acentuou a importância da mídia (aqui representada pelo jornal) nesse contexto, seja como forma de propagação de informações ou enquanto poderoso meio de criação e destruição de imagens. Ransom ensina os analfabetos a ler, libertando-os da dependência, fornecendo-lhes insumos para lutar sem recorrer à pólvora. Em meio a essa turbulência, a bela Hallie (Vera Miles), até então quase prometida a Tom, começa a se apaixonar por ele e seus ideais. Ela se encanta pelo futuro, por isso escolhe Ransom, espécie de símbolo da nova era. Infelizmente para Tom, pois a despeito de sua honradez e dignidade, pouco a pouco é decretada a falência do sistema baseado no olho por olho, dente por dente.

Mas é aí vem a grande e genial ironia de O Homem que Matou o Facínora. Mesmo sendo evidentes os novos tempos, Ransom ganha fama por um ato à moda antiga, por ter supostamente matado Liberty Valence, ao invés de leva-lo às portas da lei. Ou seja, só ganha respeito ao hipoteticamente sujar as mãos de sangue. Terá de conviver com uma mentira, que ao mesmo tempo lhe ajudou na carreira política, e por consequência foi boa ao povo, mas que eclipsou o nome daquele que realmente deu cabo do malfeitor. A história deve estar repleta de distorções dessa natureza, o que reforça ainda mais o papel dos que a escrevem, pois, em última instância, é deles o verdadeiro poder de criar ídolos e facínoras no inconsciente coletivo. 


Publicado originalmente no Papo de Cinema

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