domingo, 26 de julho de 2009

Ser ou não ser...


Fugirei da tentação de começar este texto versando sobre a pouca audiência que Som & Fúria teve. Não gastarei um parágrafo, sequer, tentando entender esta quimera chamada “público” que prefere um filme de ação desenfreada sendo exibido na emissora concorrente, em detrimento da beleza de uma minissérie que tem a coragem de falar de Shakespeare na televisão aberta. Mesmo querendo fugir de tais críticas e de uma visão mais incisiva sobre a “audiência”, acabei por me trair e falei um pouco do que não me propus a falar. Agora sim, farei de conta que os números não contam, que os resultados não influem no desenvolvimento da arte e falarei somente do que importa, que é a própria arte.

Adaptada de uma minissérie canadense pelo cineasta Fernando Meirelles, que disse, inclusive, ter adorado a experiência de fazer televisão depois de seu reconhecimento internacional como diretor cinematográfico, Som & Fúria fala sobre um grupo de teatro, ligado ao teatro municipal, portanto estatal, que luta para tirar do papel, durante uma temporada de clássicos, algumas peças daquele que é celebrado como um dos maiores, senão o maior, dramaturgos de todos os tempos: William Shakespeare. Depois de uma apresentação de Sonhos de Uma Noite de Verão, Oliveira, o diretor artístico morre atropelado por um caminhão de presunto e, em meio a comoção pelo acontecido, eis que Dante é chamado para substituir Oliveira. Dante é um diretor que trabalha com teatro independente, um festejado ator do passado que caiu em desgraça após abandonar uma peça em plena apresentação. Ele interpretava Hamlet, o príncipe da Dinamarca, numa montagem dirigida por Oliveira, de quem era amigo. Sim, era, pois Dante e Oliveira, depois do ocorrido, passaram a ser desafetos. A ironia aqui não reside apenas no fato de Dante assumir a direção artística depois da morte de Oliveira. Tampouco ela se caracteriza pela peça a qual Dante precisa montar imediatamente: Hamlet. A ironia fica por conta das aparições do fantasma de Oliveira à Dante, tal qual faz o rei, pai de Hamlet, na peça do bardo inglês. Em meio a esta situação, a companhia de teatro precisa se desenvolver, criar peças, montar aquilo que serve para motivar a platéia.

Som & Fúria foi uma realização belíssima, um programa com o refinamento do qual precisávamos na televisão brasileira, tão dominada por shows que maquiam a realidade ou mesmo programas que nos transformam em macacos de auditório. Meu entusiasmo com estes primeiros doze capítulos (torço por uma segunda temporada) é tamanho que ouso a dizer que, desde Cidade de Deus, Meirelles não apresentava uma obra tão densa e relevante, tão cheia de nuances, independente do meio. O diretor geral começou acertando na escolha do tema: Shakespeare. O dramaturgo inglês, que em sua época buscava escrever para um público amplo, acabou sendo erroneamente elitizado com o tempo, e no aspecto da aproximação de seus textos e temáticas universais com o grande público, Fernando Meirelles acertou no tom leve, irônico, sem abdicar de passagens emocionantes, dramáticas, emulando, mesmo que limitado pelo meio, a pluralidade de temas que Shakespeare abordou em seus escritos. Porém, os acertos da equipe de produção não se limitaram a abordagem sensível das obras imortais de Shakespeare.

Um dos grandes trunfos de Som & Fúria está no seu maravilhoso, irretocável elenco, cheio de nomes poderosos e, especialmente, de um retorno triunfal, o de Felipe Camargo. Felipe surgiu como astro na década de oitenta, mas sucumbiu à fama, às drogas e ao álcool, caindo no ostracismo do qual Som & Fúria acabou de tirá-lo. Felipe esteve magnífico como Dante, uma atuação digna de um triunfo. Mas como falar de elenco sem mencionar o fantasma brilhante de Pedro Paulo Rangel; a diva multifacetada de Andréa Beltrão; o engraçadíssimo diretor administrativo criado por Dan Stulbach; a caricata funcionária pública de Regina Casé; o publicitário enrolador de Rodrigo Santoro; o ator de televisão que quer ser levado a sério, encarnado por um versátil Daniel Oliveira; a atriz principiante dividida entre o amor e a arte, da ótima Maria Flor; o funcionário de teatro que ama o teatro, interpretado pelo, sempre genial, Gero Camilo; ou mesmo a secretária única que saiu do talento de Cecília Homem de Melo. Temos mais gente, que me furto de comentar, por medo de que este texto fique comprido demais (se já não o está). Enfim, a minissérie foi um verdadeiro desfile de interpretações, muito bem regidas, é verdade, mas que exalaram o talento natural e a força da dramaturgia brasileira.

Som & Fúria foi uma das melhores realizações da televisão brasileira nos últimos anos, sem dúvida, pois, brincando com arquétipos, utilizando por vezes a galhofa, e em outras a profundidade de peças sobre assassinos e casais que vagam entre o amor e a traição, ela ergueu um espelho que nos refletiu. Além disso, serviu para lembrar que as peças de um homem morto há quase trezentos anos, ainda dizem muito sobre a natureza humana, sobre seus dramas, paixões, desilusões e felicidades.

Como, em minha opinião, o que importa é a qualidade e a relevância artística do que foi proposto, Som & Fúria foi um estrondoso sucesso, uma obra exitosa.

O resto é silêncio.

3 comentários:

  1. Olá, Celo!
    Belo texto. Permita-me a concordância com seu escrito, já que trairia minha consciência se assim não procedesse. "Som & Fúria" é a prova do talento tupiniquim no que se refere ao audiovisual.
    Sou um entusiasta e apaixonado pelo, talvez futuro cadáver, Projeto Quadrante. Contudo, me vejo impelido à destacar uma vantagem que "Som & Fúria" tem em relação a este: a acessibilidade, mesmo que ignorada por muitos, acostumados com tramas de assimilação viral.

    Abraçossss

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  2. Não posso dizer muito, já que acabei por ver apenas um trecho do primeiro episódio da série - que em muito me interessou. Vou abdicar também comentários que possivelmente seriam repetidos sobre o cérebro da massa brasileira (essa massa que você cita no texto, que prefere o filme descerebrado à produção artística quase nunca desenvolvida pela tv brasileira). Digo apenas que quero conferir a série logo, e então poderei desenvolver um comentário mais válido!

    Abraços Celo!

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  3. Parabéns pelo site, que estou incluindo em meu blogroll, e obrigado pela visita ao Cinema é Magia.

    Grande abraço
    Tommy Beresford
    http://cinemagia.wordpress.com/

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