terça-feira, 23 de março de 2010

Ilha do Medo

Direção: Martin Scorsese
Roteiro: Laeta Kalogridis, baseado no romance de Dennis Lehane
Elenco: Leonardo DiCaprio, Mark Ruffalo, Ben Kingsley, Max von Sydow, Michelle Williams, Emily Mortimer, Patricia Clarkson, Jackie Earle Haley, Ted Levine, John Carroll Lynch, Elias Koteas, Robin Bartlett, Christopher Denham, Nellie Sciutto, Joseph Sikora

As tomadas iniciais de Ilha do Medo, mais novo filme de Martin Scorsese, já mostram que estamos diante de uma atmosfera que somente um mestre poderia criar. Dá impressão que fomos transportados para outra época, que estamos, de fato, na década de cinquenta vendo um filme recém lançado num daqueles cinemas clássicos. A música incisivamente conduz o suspense, as belas imagens inebriam, o clima da ilha do título é sombrio, misterioso, mas chama a atenção como a música é que faz com que fiquemos a espreita, aguardando algo. Bela utilização do recurso. Há normas em Shutter Island, não se pode isso, pode-se aquilo, os protocolos médicos passam por cima de ordens federais, dos “US Marshalls” tão intocáveis na hierarquia policial americana. A névoa dissipada na primeira cena, parece ainda turvar os olhos de Teddy, e os nossos também. Há algo de podre no reino da ilha na qual Scorsese ambienta a história baseada no livro de Dennis Lehane, e nós, espectadores, somos envoltos numa bruma que confunde, embaralha nossa percepção. A investigação do desaparecimento de uma prisioneira/paciente parece travada pela burocracia, mas principalmente por segredos que os administradores do presídio/manicômio parecem indispostos a revelar.

Chega um momento em que fica difícil, eu diria até mesmo quase impossível, distinguir o que é verdade, quem se vale da verdade. Teddy é um ser atormentado por traumas, por feridas que remetem a segunda grande guerra, os campos de concentração, a lembrança dos corpos empilhados que reduziam o humano a nada, a um amontoado de carne fétida exposta as variações do clima. A paranóia é dominante, Scorsese quase passa do ponto, o clima fica quase que insuportavelmente embaralhado, as intenções não são claras, quem era bom passa a ser suspeito e de quem se suspeitava, se suspeitará ainda mais. A história reflete bem, em certas partes, a paranóia americana da época contra os comunistas, e o medo que os estadunidenses tinham de experimentos e experiências mirabolantes, na busca da vantagem que os bolcheviques teriam num eventual combate bélico.

Martin Scorsese, que não fazia algo digno de tanta reverência havia algum tempo, mostra que ainda é grande, mostra que quando quer, ou quando se inspira, pode ainda produzir um filme que faça frente as suas mais célebres obras. O maior triunfo de Ilha do Medo é , além de ter uma técnica deslumbrante e trazer, mais uma vez, Leonardo DiCaprio preciso sob as rédeas de Scorsese, o de possuir uma atmosfera que dá à história característica primordial de constante descoberta, não para isso se apoiar em reviravoltas fáceis, mas construindo gradativamente o que se configura como transfiguração no encerramento. É um tipo de cinema raro este praticado em Ilha do Medo, um tipo que ficou meio perdido na cinematografia americana, caracterizado pelo classicismo da mise-en-scène, por interpretações fortes, pela arquitetura milimetricamente pensada e brilhante execução.

Um dos maiores êxitos comerciais de Martin Scorsese (prova de que há vida inteligente na audiência massiva, ou de que a maneira como o marketing do estúdio o vendeu, como um terror, foi eficiente?), Ilha do Medo é um exemplar atual de raro impacto, seja ele estilístico ou mesmo no que diz respeito ao jogo que propõe e às ligações com nossas astutas conjecturas de espectador. Uma conjugação de fatores faz deste filme um dos melhores de Scorsese em anos, e se Teddy encerra com uma dúbia, ou mesmo falsa, redenção, na verdade ele pode bem ser entendido como um Francis em cores, um personagem tão atormentado e complexo quanto aquele que narrou O Gabinete do Dr. Caligari, um dos maiores filmes do expressionismo alemão. Ilha do Medo é um mar de referências, envolto numa névoa criada por um gênio, e quando ela se dissipa só nos resta reverenciá-lo. Grande filme.


3 comentários:

  1. Oi Celo!

    Não preciso falar qualquer outra coisa sobre o ótimo filme, nossas impressões foram muito semelhantes (talvez com exceção do final, onde a redenção que você cita é anulada pela última sequência).

    É ótimo ver os livros do Lehane sendo adaptados ao cinema com tamanha seriedade, por vezes superando até mesmo as obras escritas. Clint Eastwood, Scorsese e até Ben Affleck fizeram o que raramente é visto em tela grande: adaptações dignas de serem apreciadas em um meio diferente.

    Abraços guri!

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  2. Olá, Celo!
    Fazia um certo tempo que não me empolgava tanto. Excelente filme.

    Abraçosss

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  3. Só consegui assistir "ilha do medo" agora, mais precisamente hoje, quase agora e posso sentir que o efeito pós trauma, brincadeira: pós filme só me afetou rsrs.
    Estou impactada e com um mal estar enorme. Mal comparando o roteiro com as câmeras malucas que habitam outros filmes de outros gêneros, me senti tão enauseada como se tivesse vendo esse tipo. A trama é muito boa e concordo com tudo que disseram acima.
    Leonardo Di Caprio realmente está sensacional e nos convence encarnando um paciente com episódios paranóico delirantes.
    Só achei dispensável a atuação do Mark Ruffalo no filme. Acho ele muitooo fraco e em "A ilha do medo" nao consegui mudar minha oponião sobre ele, pois diferente do Di Caprio, Ruffalo nao convence em momento algum,pelo contrário, nas cenas em que ele era de fato o psiquiatra e portanto era real pro protagonista, acabava nao fazendo diferença entre "o parceiro,o assistente" e o psiquiatra. Mas diante da grandeza do filme, a fraca atuação de Mark Ruffalo passa a ser só um detalhe, mero detalhe.

    Carol

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