quinta-feira, 10 de março de 2011

Showgirls e a aparência que engana


Showgirls virou maldito após uma boa parcela da crítica tê-lo considerado fracasso artístico, completa “bola fora” do conceituado diretor Paul Verhoeven. A história da menina que vai a Las Vegas sonhando ascender ao estrelato foi malhada muito por conta das inúmeras cenas de nudez, pela propagada gratuidade de vários elementos, pela dita falta de talento do elenco, entre outras coisas, muitas delas que grudaram no imaginário de parte do público cinéfilo. É minha opinião, e ninguém precisa concordar com ela, mas acredito que Showgirls não apenas passa muito, mas muito, ao largo da ruindade, como é um filme de muita sensibilidade, de qualidades latentes e até bem evidentes. Um grande filme, até arriscaria dizer, que se peca em algo, é em apostar na capacidade do espectador de furar as camadas mais evidentes e prestar atenção nas entrelinhas e sutilezas.

Existem muitos pontos a se exaltar em Showgirls, e um deles é a forma quase assexuada com a qual esquadrinha o sexo, tratando ele com frieza, mostrando-o como um dos fatores de corrupção numa sociedade naturalmente disposta a corromper. Nomi, a protagonista, sufoca o passado, tentando deixar para trás sua vida pregressa, buscando edificar uma nova personalidade baseada na negação do que foi. Mudar de cidade significa para ela o mesmo que trocar de vida, assumir outras expectativas, joviais possibilidades. Não confiar em quase ninguém, é uma das lições que Nomi aprende desde cedo, a duros golpes, sentindo na pele o egoísmo humano, este que paradoxalmente vê aflorado a posteriori em suas próprias atitudes destrutivas. O dinheiro e a fama adulteram a menina que desembarca cheia de ideais na cidade da jogatina no Deserto de Nevada e, durante o processo de endurecimento ao qual se submete como ônus de suas ambições, acaba por virar uma peça quase voluntária de uma rede de jogos escusos, carentes de elementos básicos como a ética e a moralidade.

Verhoeven fez um filme que muita gente não entendeu. Não é fácil construir uma narrativa como a de Showgirls, apostando muitas vezes no kitsch, utilizando signos de difícil controle, como a nudez, a sugestão do poder sexual, sem que se escorregue vez ou outra, ora dotando de glamour excessivo a atividade “artística”, ora descambando para o típico drama em que a protagonista vira a coitadinha que merece um final feliz. Paul Verhoeven foge destas armadilhas, munindo-se de personagens que apenas aparentam arquétipos cansados, e uma mise-en-scène que utiliza o baile dos corpos desnudos como metáfora para uma sociedade oca e opaca, que premia a aparência, o estereótipo e a beleza dos corpos esculpidos, com as mais distintas láureas. Showgirls mostra um mundo vazio e apodrecido, num entorno capaz de contaminar quem quer que seja, ainda mais alguém que se dispõe à corrupção como degrau anterior ao sucesso. Num filme de tão rica construção, que exibe a maestria habitual de Verhoeven, um diretor que joga constantemente com aparências, ver repetidamente mulheres de corpos esculturais completamente nuas, até desperta desejo, não sejamos hipócritas. Porém, quando há clareza do real movimento das coisas, começa-se a prestar menos atenção nos seios e quadris, e mais nos sinais de instabilidade, em várias esferas, que acometem as pessoas, principalmente Nomi. Showgirls é um filme sobre aparências, e confiar em sua roupagem mais epidérmica, por assim dizer, seu aparente vazio, pode ser um passaporte para não compreendê-lo em sua complexidade.

3 comentários:

  1. É exatamente isso! O título de seu texto aqui, ilustra bem o que ficou de "Show Girls".
    Acho que é um filme que engana(pela temática e pela forma como foi divulgado) e pode caír facilmente, ainda mais na época, como de fato ocorreu, numa desqualificação barata do cinema.
    Se enxergarmos pela vertente do gênero e nada mais, podemos pensar numa eroticidade que mascara todo o resto, mas se não..outros elementos se destacam fazendo de "Show Girls" um filme rico em elementos visuais, uma linguagem que o Paul V. ousou, mas que representava bem a atmosfera desse meio stripper/cassinos/submundo do crime etc.
    Gostei muito da Elizabeth B. no papel principal. E embora ela não seja essa coca cola toda, aliás esteve bem longe de ser, ela cumpre mto bem seu papel, sem deixar a desejar. Não imagino outra em seu lugar fazendo esse filme.

    Parabéns pelo texto Marcelo! Acho sempre muito legal esse espaço que vocês abrem para revisitações!
    Estamos numa era onde basicamente as novidades dominam!
    beijos

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  2. Celo!

    O mais difícil na crítica é ir contra a opinião massiva de outros e defender sua experiência com argumentos que sejam genuínos e válidos. Você foi ótimo nisso! Gostei realmente do texto e fiquei interessado no filme e no cineasta, que nunca me causaram mais que a indiferença.

    Parabéns, Celo.
    Argumentos banais e vazios são os mais comuns na internet. Você, como o Buzz Lightyear, vai ao infinito e além.

    Abraços!!

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  3. Olá, Celo!
    Bela construção textual.
    Quanto ao filme, ainda não tive a oportunidade, porém as impressões já são ótimas.

    Abraçossss

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