domingo, 27 de março de 2011

The Tramps Entrevista: José Geraldo Couto

Iniciamos com este bate-papo, uma série muito especial de entrevistas com críticos de cinema, exclusivamente concedidas ao The Tramps. Foram propostas algumas questões a profissionais que são referências na busca por uma melhor compreensão da arte cinematográfica. As perguntas são as mesmas para todos, e elas pretendem oportunizar uma reflexão sobre o ofício de crítico, a qualidade do pensamento acerca do cinema (e das artes como um todo), e permitir uma troca de informações sobre as articulações que buscam a iluminação dos diversos aspectos desta arte "divina e maravilhosa", como diria Gláuber Rocha.

É com imensa honra que apresentamos nosso primeiro entrevistado: José Geraldo Couto. Paulista de Jaú, Zé como carinhosamente é chamado, formou-se em história e jornalismo pela USP. No Grupo Folha, foi redator e editor-assistente de Cotidiano, redator da Primeira Página, redator e repórter do Mais! e da Ilustrada. Cobriu ainda vários eventos esportivos, além de diversos festivais de cinema e feiras literárias. É autor de "André Breton - A Transparência do Sonho” (Brasiliense), "Brasil: Anos 60" (Ática) e organizador de "Quatro Autores em Busca do Brasil" (Rocco). José Geraldo também é tradutor.

Sigam o Zé Geraldo em seu blog: http://blogdozegeraldo.wordpress.com/

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• Como nasceu em você a paixão pelo cinema?
É difícil dizer. Nasceu na infância, acho, no encantamento da sala escura, das imagens arrebatadoras de faroestes e filmes de aventuras. Mas a ideia de que o cinema pode ser pensado e discutido surgiu só na época de colégio (o equivalente ao atual segundo grau). Foi quando escrevi minhas primeiras tentativas de crítica, para o jornalzinho da escola.

• Qual é o sentido de ser crítico nos dias de hoje?
Acho que o sentido, ou um dos sentidos possíveis, de ser crítico nos dias de hoje é ir um pouco contra a corrente da publicidade e do senso comum, chamando a atenção das pessoas para outras maneiras de ver e fruir as obras de arte (no caso, os filmes). Iluminar aspectos da produção artística que tendem a ser obscurecidos pela cultura das celebridades, do entretenimento rasteiro. Trazer para a discussão aspectos relevantes dos filmes, dos mais "comerciais" aos mais aparentemente áridos.

• Qual sua posição frente a nova crítica de cinema, que germinou na era dos blogs e das revistas virtuais?
Penso que é preciso separar o trigo do joio. Assim como ocorre nas publicações impressas, a internet abriga o pensamento mais sofisticado e a crítica mais rasteira, apressada e irresponsável. Por um lado, surgiram na internet críticos-cinéfilos muito informados e competentes, como o pessoal das revistas contracampo, cinética, cinequanon etc. Uma geração de críticos e pensadores de cinema que não tinham espaço nos grandes órgãos de imprensa. Mas, dada a facilidade de criação de blogs, surgiu também uma grande legião de palpiteiros sem muita formação e informação. A questão é saber triar, saber escolher aquilo que vale a pena ler.

• Como vê o academicismo de certas linhas de pensamento na crítica cultural? Acredita que a dissecação de um filme, tornando a análise o mais objetiva possível, tende a enfraquecer a importância da análise subjetiva?
Acho que a crítica não deve partir da pretensão de ser totalmente objetiva. Deve, ao contrário, reconhecer desde o início que será sempre uma visão parcial, um recorte, uma abordagem a partir de um determinado ponto de vista. Isso não significa abrir mão da busca de uma certa objetividade, ou do recurso ao mais amplo instrumental possível de análise. Sou contra o "opinionismo", a crítica sentenciosa, que coloca o julgamento acima da observação, da análise, da exegese. Não é tão importante saber se o crítico x ou y "gostou" ou não de um filme, mas sim o que ele viu ali que pode ajudar a fruir melhor aquela obra. Penso que o crítico deve ajudar o espectador a aguçar o olhar e ampliar a sensibilidade, em vez de impor a ele a sua opinião, o seu juízo.

• Quais são seus críticos de cinema favoritos? Os de outrora, que influenciaram ou ainda influenciam seu trabalho, e os de agora, que acredita sustentarem com talento a causa da crítica de cinema.
Dos críticos de outros tempos, os que mais me influenciaram, e que admiro ainda hoje, são os franceses André Bazin e François Truffaut e o brasileiro Paulo Emilio Salles Gomes. Os textos deles iluminam de tal maneira o objeto abordado - e o cinema de um modo geral - que sua leitura é um grande prazer e um grande aprendizado. Dos críticos que estão aí na ativa, admiro muito o Ismail Xavier e o Jean-Claude Bernardet, no âmbito da crítica erudita-universitária, digamos, e na imprensa sou fã de carteirinha do Inácio Araujo e de alguns críticos que estão meio afastados dos jornais, como o José Carlos Avellar e o Carlos Alberto Mattos. Entre o pessoal que surgiu na internet, gosto em especial do Eduardo Valente, da Cinética, e do Daniel Caetano. Claro que estou deixando de lado muitos críticos excelentes, mas não quero fazer uma lista exaustiva e enfadonha.

• É célebre a história de Antonio Moniz Vianna, que parou de escrever quando da morte de seu maior ídolo, John Ford, pois acreditava que nada tinha mais a acrescentar como pensador diante da crise criativa contemporânea. Qual diretor cuja morte já lhe provocou semelhante desalento?
Toda morte de um grande diretor causa consternação em quem ama o cinema, mas sinceramente acho um pouco tolo e melodramático atribuir à morte deste ou daquele cineasta o "fim do grande cinema" ou, pior, o fim da civilização. Acho mais estimulante procurar e "descobrir" novos cineastas, novas cinematografias, novos olhares. É como no futebol. Há saudosistas que dizem que o futebol nunca mais foi o mesmo depois de Pelé. Mas, puxa vida, depois dele tivemos Romário, Maradona, Zidane, e hoje temos Messi. É preciso, sem esquecer o passado e a tradição, manter os olhos abertos para o que está vivo à nossa volta.

• A perda de espaço de textos críticos nos veículos impressos é sintoma da falta de interesse público, ou a busca ávida dos veículos pela adequação a tempos de pouca reflexão?
Acho que as duas coisas. Tem a ver com uma submissão mais ampla do jornalismo aos ditames do mercado. A parte de cultura dos jornais e revistas semanais virou pouco mais do que um guia de consumo de bens culturais. Há pouca reflexão, pouco espaço para desafiar o mercado. Um blockbuster hollywoodiano, ao chegar ao circuito, já tem garantidas as capas e fartas páginas dos cadernos de variedades. Ao mesmo tempo, para discutir um filme brasileiro ou argentino ou coreano da maior relevância estética e cultural, muitas vezes não há espaço. Acho que os editores e diretores de grandes jornais se acomodam muito rapidamente à ideia de que "é isso o que o leitor quer", sem perceber que o próprio jornal é um formador de opinião, e que o público não é uma massa uniforme, nivelada por baixo, mas abarca pessoas e grupos com os mais diversos interesses e expectativas.

• Discutir "comércio versus arte" ainda é válido quando percebemos qualquer cinematografia?
Válido é, mas desde que evitemos a armadilha de criar uma contraposição mecânica entre essas duas coisas. Há filmes extremamente comerciais que são relevantes artisticamente, e há filmes que fracassam na bilheteria não por serem "artísticos", mas por serem desinteressantes ou simplesmente ruins mesmo. Sempre cito o caso de Hitchcock, cujo principal objetivo era sempre atingir e comover o maior público possível, e que no entanto criou filmes extraordinários do ponto de vista da linguagem e da estética do cinema.

• Como vê o cinema brasileiro atual?
Vejo uma situação rica e um tanto confusa. Há os grandes sucessos de bilheteria, como Tropa de Elite, Chico Xavier e Se Eu Fosse Você, e há, na outra ponta, uma série de filmes autorais, com uma busca interessante de linguagem, que encontram muita dificuldade em encontrar um lugar no mercado exibidor. E entre um extremo e outro existe uma grande massa de filmes que almejam o mercado, que fazem todo tipo de concessão (estética, dramatúrgica, de elenco, de tema) para atingir esse mercado e que no entanto fracassam, porque ficam no meio do caminho, sem a eficácia narrativa dos blockbusters e sem a alma dos filmes autorais. Essa, a meu ver, é a maior praga, é o entulho que funciona como um peso morto e atrapalha o desenvolvimento do cinema feito no Brasil e sua relação com o público. Claro que a grande questão, já que bem ou mal se consegue produzir bastante, segue sendo o gargalo da exibição, a ocupação de 90% das salas por três ou quatro filmes de grande público. O fato de, eventualmente, um desses três ou quatro ser brasileiro, a meu ver, não refresca muito. Acho que quanto maior a diversidade à disposição dos espectadores, melhor.

3 comentários:

  1. Agradeço, mais uma vez, a disponibilidade e a gentileza do José Geraldo Couto em contribuir com nosso blog. É sempre bom ler uma opinião embasada, de alguém que coloca a reflexão acima das apressadas conclusões.

    Abraços

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  2. Contribuição incrível para o The Tramps. Parabéns ao José Geraldo Couto pelas excelentes repostas e argumentos que deve(ria)m ser característicos de alguém com conhecimento de causa, como é o caso.

    E Celo, parabéns na concepção das perguntas e na formatação da ideia das entrevistas com críticos. Espero ansioso pelas próximas!

    Abraços.

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  3. Olá, Celo!
    Parabéns pela grande iniciativa.
    Aguardo os próximos episódios desta série de entrevistas.

    Abraçoss

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