sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Bem-vindos a Twin Peaks


Somos uma geração devidamente acostumada às boas (até mesmo excelentes) séries de televisão, muito pela transformação do meio em terreno fértil para projetos cada vez mais interessantes. Mas, nem sempre foi assim. Twin Peaks, seriado capitaneado pelo cineasta David Lynch, foi uma espécie de divisor de águas neste sentido, quando lançado lá nos idos anos 90. O público certamente não estava acostumado àquele tipo de experiência, possuidora de complexidades inabituais em projetos para a telinha. Mas, para a surpresa de muitos, “Quem Matou Laura Palmer?” virou pergunta recorrente, propriedade do imaginário coletivo, assim como os personagens e situações que movimentaram a pequena cidade do interior dos EUA por duas temporadas. 

A morte da linda Laura Palmer, cujo corpo é encontrado envolto em plástico, boiando no rio da cidade, desencadeia uma série de eventos que mostram a localidade como depositária de segredos, intrigas e mistérios, insociáveis num primeiro momento às suas belas paisagens, repletas de bosques e charme rústico. O agente do FBI Dale Cooper desembarca neste cenário idílico e machucado para investigar a morte da jovem, e acaba se afeiçoando demais às pessoas, ao clima campestre e aos donuts que adoçam os interlúdios do processo investigativos. Cooper, aliás, é um personagem fascinante, visto com o mesmo estranhamento e simpatia fraternal com que encaramos, por exemplo, a senhora que anda para lá e para cá embalando e trocando ideias com um tronco. 

Conduzidos pela magistral trilha de Angelo Badalamenti, repleta de sons estranhos e soturnos, somos levados a desvelar esta coletividade que, a despeito de estar inserida numa pequena comunidade, possui as mesmas pragas cotidianas que tornam enfermas as metrópoles. A mão de David Lynch é evidente, sua verve esquisita (algo entre o surreal e o abstrato) é facilmente percebida, pois impregnada na ambientação atmosférica, nos tipos estranhos, e na maneira cotidiana de lidar com anões que dançam, gigantes mensageiros e entidades maldosas vindas de dimensões desconhecidas. O bizarro é apenas mais um dos convivas de Twin Peaks

É certo que nem tudo são flores. Após a solução principal, ou seja, quando finalmente sabemos quem matou Laura Palmer, a qualidade do programa cai sensivelmente, não propriamente pela falta do mistério, mas por que se insiste no desenvolvimento de tramas paralelas que beiram o banal. Neste momento, Twin Peaks só não fica de todo desinteressante por conta da riqueza de seus personagens, e empatia por eles estabelecida com o público. Porém, com a chegada de Window Earle, o psicopata ex-parceiro de Cooper, e sua vocação assassina, o seriado volta a ganhar fôlego, inclusive no desenvolvimento bastante engenhoso dos elementos que dão conta das dimensões paralelas e polares que explicam, de alguma maneira, fenômenos bizarros que acometem a cidade. Se bem que, ao tentar elucidar este embate metafísico entre bem a mal, tira-se um pouco do instigante mistério da primeira parte, em que tudo estava devidamente envolto na bruma do incompreensível. 

Feitos os devidos reparos, não há como negar o caráter vanguardista de Twin Peaks, série que, por seu sucesso junto ao público, foi uma das ignições do movimento que hoje nos permite constante renovação nas produções televisivas americanas. Não é pouca coisa. Assim como não são poucos os méritos artísticos desta cria autêntica de David Lynch, artista sui generis, que antes de dedicar-se de corpo e alma às causas da meditação transcendental, nos ofertou diversas obras fascinantes. Twin Peaks está na galeria dos grandes trabalhos de Lynch, seja pela primazia de figuras dramáticas tão interessantes e cheias de camadas, pelas inspiradas construções, fabular e narrativa, ou ainda pela disposição em mostrar, cravado num cenário pouco explorado, o potencial de uma trama que, com raras exceções, recusa veementemente confortar o telespectador.


Publicado originalmente no Papo de Cinema

2 comentários:

  1. Sou suspeita pra falar. Mas pra mim, a grande sacação de Lynch foi justamente na época, fazer o que vc falou em outras palavras: inovar no estilo e quebrar com o único padrão de suspense existente até então.
    Depois deste, surgiram outros tantos "Quem matou Laura Palmer" e essa pegada veio pra ficar. Funcionou e parece que continua em alta.
    A mescla de personagens bizarros , um crime altamente atraente de se descobrir,o mistério massacrado em nossas mentes e o bordão"Quem matou Laura Palmer" podem parecer elementos simples e batidos,mas na mão de David Lynch sofrem grandes transformações. Ele manda muito bem!!!

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