sábado, 23 de junho de 2012

Precisamos falar sobre Perspectivas


Adaptações literárias ao cinema geram polêmica, e quanto “maior” o livro, mais acaloradas são as comparações. Ser subserviente é pecado cinematográfico contumaz, e o caminho correto (se é que existe um) parece aquele trilhado por roteiristas e diretores que tentam emular mais a verve estilística do escritor, do que propriamente a fábula por ele criada. Mas há também de se respeitar certos cânones do contado, evitando assim descaracterizações. Missão complexa, não?

Precisamos Falar Sobre o Kevin foca, sobretudo, a relação entre Eva e o filho que chacinou alguns colegas. A diretora Lynne Ramsay tenta seguir o recomendado ao refutar determinados grilhões do livro, quase sempre disposta a representar de sua maneira, ora o torpor de Eva, ora sua angústia cotidiana, num diálogo aberto com o núcleo duro do romance, não presa a ele. Porém, Ramsay se excede nos maneirismos, na direção chamativa, no caráter por demais lacunar e na decupagem “artística”, artificial até os ossos.

Afora méritos/deméritos, quer-se aqui discutir uma importante alteração ocorrida na transposição. Nas páginas escritas por Lionel Shriver, o desenrolar se dá por meio de uma mulher retrospectiva que escreve ao ex-marido. São reminiscências, recordes imprecisos (como qualquer deles), ou seja, há prováveis exageros, visões bastante particulares, distorções corriqueiras, etc. Já no filme, Lynne Ramsay transforma essa subjetividade em objetividade, pois não há indícios do viés memorialístico original. Por certo, a descontinuidade temporal fílmica insurge como veículo do passado e de suas correlações, mas não possui qualquer efeito de filtragem dos acontecimentos pelo trauma ou através da memória, como subentendido no livro.

Em primeira instância, não se deveria paralelizar com tanto furor meios independentes, encerrados em si. No entanto, análises comparativas entre basilares literários e derivados cinematográficos impõem-se historicamente, e no caso de Precisamos Falar Sobre o Kevin a mudança supracitada pode parecer ínfima, mas, quando objeto de reflexão, aparece como importante elemento que diferencia a leitura do mostrado na tela.


Publicado originalmente no Papo de Cinema

Um comentário:

  1. Olá, Celo!
    Crítica é isto: não abarcar todas as significâncias da telona; apontar as que poucos perceberam.


    Parabéns,
    Abraçosss

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