domingo, 3 de fevereiro de 2013

Hedwig: Rock, Amor e Traição


Hansel nasceu na Alemanha no mesmo dia em que o Muro de Berlim dividiu o país em dois. Vivendo no lado ocidental, sua infância foi permeada por abusos dos homens que transitavam em sua casa e pelo convívio com uma mãe omissa, que comparava Jesus Cristo à Hitler. Suas únicas influências externas surgiram do rádio, quando cantores como Iggy Pop, David Bowie e Lou Reed criaram um imaginário de glamour e rock em sua limitada existência. A situação se altera com a chegada de um oficial do exército norte-americano, que o promete uma vida melhor em um longínquo lugar chamado Junction City, no Kansas. A única condição que o separa do sonho americano é uma cirurgia para mudança de sexo – que, depois de feita, infelizmente não sai como deveria.

Assim nasce Hedwig, cantora que sintetiza o que foi o movimento glam rock com seu figurino e maquiagem extravagantes e músicas incrivelmente viscerais. John Cameron Mitchell, que escreveu e protagonizou o musical off-broadway Hedwig and the Angry Inch em 1998, fez sua estreia na direção de longas com a adaptação do material para a tela grande. No papel-título novamente, Mitchell foi indicado ao Globo de Ouro, venceu o Teddy do Festival de Berlim, duas láureas no Festival de Sundance e mais de 20 outros prêmios. Além de seguir em cartaz com montagens ao redor do mundo, da Grécia à Coréia do Sul, Hedwid and the Angry Inch atingiu o status de filme cult, envolto numa mítica que o coloca no panteão de musicais transgressores, como Rocky Horror Picture Show (1975) e Priscilla, a Rainha do Deserto (1994).

Stephen Trask é o nome por trás da extasiante trilha sonora de Hedwig: Rock Amor e Traição, que pontua o clima ousado do filme na voz marcante de John Cameron Mitchell. Canções como Tear Me Down, Angry Inch e Wig in a Box podem ser ouvidas à exaustão depois da experiência ímpar propiciada pelo filme, enquanto Origin of Love e Wicked Little Town marcam momentos mais introspectivos do musical, que explicitam a faceta romântica de Hedwig e o letrista brilhante em Trask. A inserção dos números sonoros na narrativa – problema em incontáveis filmes do gênero – é feliz ao imprimir um ritmo fluído para o filme, fugindo de uma linguagem episódica. As sequências animadas de Emily Hubley, muito originais, contribuem para equilibrar o lirismo visual ao virtuoso som da obra de Mitchell. 


As questões de gênero, sexualidade e identidade são centrais em Hedwig: Rock Amor e Traição. Hedwig, após sua mutação sexual, se transforma num híbrido que funciona como caricatura de si mesmo sem deixar de ser crível. O guitarrista e backing vocal da banda Angry Inch, em outro exemplo, é uma mulher oculta numa figura masculina que dificilmente poderia ser questionada como tal. Independente da aparência externa de cada um, ambos são frágeis criaturas procurando um lugar para ocupar – dentro de si mesmas ou de um mundo que lhes é cruel. O filme explora os complexos temas com naturalismo elogiável, feito que Mitchell viria a reiterar no polêmico Shortbus (2006) – desta vez com menos música e mais sexo explícito.

O fechamento da jornada existencial de Hedwig, ainda que não muito otimista, é extremamente fiel a tudo o que o personagem representa. The Origin of Love, música inspirada no discurso de Aristófanes em O Banquete (ou Simpósio), de Platão, diz que os seres humanos estão incompletos e condenados a buscarem por suas outras metades. Após deixar de ser Hansel e encontrar sua metade perdida em Tommy, Hedwig é traída e passa a perseguir o cantor, que roubou suas composições. O encontro final entre os dois reserva a descoberta de que Hedwig, na realidade, é em si só um ser completo, parte homem e parte mulher. A beleza da sequência, enaltecida ao som de Midnight Radio, marca um encerramento emocionante que justifica o culto ao redor de Hedwig: Rock Amor e Traição, uma obra singular e incomparável. Lift up your hands!



Publicado originalmente no Papo de Cinema.

3 comentários:

  1. Esse filme é incrível! Obra singular como você falou Conrado!
    parabéns pelo texto. bjs

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  2. Kon,

    Realmente, "Hedwig: Rock, Amor e Traição" é um musical sui generis. Suas questões existenciais casam incrivelmente com clima glam que a muitos pode soar excessivo.

    A trilha sonora é genial, assim como a pegada de Mitchell, autor que costura com habilidade uma narrativa sensível e íntima, sem furtar-se de contrastar tudo com os visuais chamativos.

    Sem dúvida, um belíssimo filme.

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  3. Olá, Kon!
    Seu texto está muito bom, no tom certo. Às vezes é difícil falar de obra tão complexa e cheia de valor, contudo você foi feliz em cada uma das colocações. Parabéns.

    Abraços

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