O pretexto para Twin Peaks – Os Últimos Dias de Laura Palmer
é Twin Peaks, seriado de TV cultuado
nos anos 1990 que prendeu a atenção de milhares de espectadores ao redor da
pergunta: “Quem matou Laura Palmer?”. Esse spin-off
não deixa a desejar, isso, claro, se evitarmos compará-lo demais justamente com
a matriz da qual deriva. Se na série, Lynch provocava emoções diferentes a cada
episódio, tornando assim a narrativa episódica mais atraente enquanto ela
avançava, no filme há uma tentativa de solenizar e dar proeminência a aspectos
extravagantes que ora guiam, ora alteram os rumos da trama. Ou seja, não
esperemos do longa o impacto causado durante as duas temporadas exibidas na
telinha, até porque provavelmente Lynch nunca tenha feito (ou mesmo venha a
fazer) algo semelhante à Twin Peaks.
Twin Peaks – Os Últimos Dias de Laura Palmer começa um ano antes da
famosa morte da protagonista. Ele parte da investigação do assassinato de outra
jovem que, aliás, nem é mais citada no decorrer. Lynch reafirma sua predileção
por revelar os segredos obscuros de uma cidadezinha pacata e humilde. Assim
como em Veludo Azul, e a calmaria de
Lumberton, em Twin Peaks surge, aos poucos, todo tipo de perversão e
transgressão, sobretudo as vividas por Laura e seus amigos. Talvez o maior
acerto, tanto do filme quanto da série, seja justamente a natureza incestuosa
do crime, cuja vítima, quem sabe, é a personagem lynchiniana por excelência, uma vez perfeita nas aparências, mas
assombrada por insuspeito lado sombrio autodestrutivo.
René Gallimard, então diplomata
francês, tem legítimo momento de estesia ao contemplar uma apresentação de Madame Butterfly, em evento para
estrangeiros na China dos anos 1960. Na ocasião, a cantora Song Liling entoa
com emoção e dor, ambas na mesma medida, a triste história da gueixa que morre
em virtude de seu amor por certo oficial americano da Marinha. A fascinação
entre oriente e ocidente, base da tragédia operística em três atos, servirá
também de combustível à paixão avassaladora dos amantes em meio à turbulenta
situação político-social. Song se enreda pelo francês para dele tirar
informações confidenciais valiosas ao partido comunista, e seu recato esconde
grande segredo, aliás, não tão oculto desde que estejamos atentos à evidente androginia
da intérprete.
A constante suspeita acerca da
sexualidade de Song é artifício que, ao invés de constituir elemento de tensão,
revolta-se contra o próprio desenrolar do enredo, pois é, por assim dizer, veladamente
ruidoso em demasia. Ao escancarar desde o início a ambiguidade do personagem e,
em contrapartida, ao longo do filme lançar mão de algumas situações cuja função
é coloca-la em xeque, Cronenberg dispersa o potencial dramático de outros rudimentos,
como, por exemplo, a política, quase rebaixada à periferia. Os méritos de M. Butterfly só emergem com mais pungência
lá para o final, quando há a exposição dos segredos (de gênero e espionagem) e
onde acontece inteligente inversão que confere amplitude a essa versão da
tragédia de Butterfly, a morte simbólica do ocidente travestido de oriente.
Curioso, na comparação, dá para
dizer: Twin Peaks – Os Últimos Dias de
Laura Palmer poderia muito bem ter sido dirigido por Cronenberg, pois de
alguma maneira alinhado a algo de seu perfil, assim como M. Butterfly, sobretudo a veia narrativa romântica, se encaixaria
ao estilo de Lynch, este mais habilidoso ao temperar histórias aparentemente
calcadas no tradicional, para delas extrair significados até então improváveis.
Ambos os longas segregam tabus.
Em Twin Peaks – Os Últimos Dias de Laura
Palmer, o principal deles é o pai abusando da filha. Mas há também as
drogas, o sexo desenfreado, entre outros dados que alicerçam a aproximação
entre Eros e Tânato. Em M. Butterfly,
o homem interpretando mulher para cumprir missão ideológica. Nos dois filmes, o
preconceito e a hipocrisia aparecem lado a lado, sendo posteriormente
desmascarados em momentos cruciais.
A diferença mais latente entre os
longas diz respeito à forma como Lynch e Cronenberg traduzem as tramas em
imagens, ou, melhor dizendo, como imprimem nelas seus próprios estilos. Se em Twin Peaks – Os Últimos Dias de Laura Palmer,
Lynch conserva o estranho dos trabalhos anteriores (e posteriores), registrando
o choque entre realidades díspares, inerentes uma a outra, Cronenberg opta por
algo mais destituído dos elementos que o fizeram cultuado, exceção feita à
maneira como explora sua obsessão pelo corpo, em M. Butterfly radicalizada por meio da confusão de gêneros, ou seja,
o corpo enquanto entidade quase assexuada.
Por Ana Carolina Grether e Marcelo Müller
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TWIN PEAKS - OS ÚLTIMOS DIAS DE LAURA PALMER – Por Ana Paula Leite
David Lynch não é um diretor qualquer e aterroriza porque tende a nos mostrar o que temos de mais assombroso em nós, indicando o velho(?) caminho do “nada é o que parece”, além de desconsertar qualquer tentativa de segui-lo em linha reta. Seus filmes costumam narrar seu rico universo imaginário e Twin Peaks, o filme, não foge à regra.
Com seus personagens peculiares e certa sensação de slow motion, somos conduzidos à asfixiante cidadezinha que dá nome ao filme, seus vazios incômodos e muitas situações angustiantes.
A série Twin Peaks marcou época com uma linguagem inovadora e brilhante; e eu era viciada nela, não perdia um capítulo, entretanto o filme não tem o mesmo magnetismo, a mesma estética, embora o clima esteja lá.
Repleto de novas alegorias e personagens, o filme sobre os últimos dias de Laura Palmer simboliza alguns diálogos não só com a série que lhe deu origem, mas com alguns outros filmes de Lynch, principalmente pelo tom de estranheza permanente, as cores vibrantes, a ambiguidade de determinados personagens e a constante sensação onírica.
Vale pela experiência, mas a série ainda me parece bem mais atraente.
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M. BUTTERFLY – Por Linara Siqueira
No início de M. Butterfly, a China é apresentada para o personagem René (Jeremy Irons), um diplomata francês em serviço no país oriental, através da cantora de ópera Butterfly (John Lone). Ou seja, como um mundo de possibilidades, lírico. O encantamento é imediato e, a partir do momento em que se falam, é criado um jogo de representações que remete ao conflito cultural entre os personagens.
No filme de Cronenberg, essa teatralidade acaba se tornando inerente ao relacionamento dos dois, através da entrega de René à paixão desmedida que ele nutre por Butterfly e da própria representação que a cantora exerce. Sendo assim, sob a máscara do pudor, Butterfly consegue enganar René de sua real condição: um espião travestido de mulher, uma persona criada por um homem.
No decorrer do filme, a Butterfly que vemos acaba se tornando uma mistura dessa personagem propriamente dita com o produto da paixão de René. Contribui para isso a interpretação contida de John Lone e a mise-en-scéne do Cronenberg, que faz do corpo ora objeto de desejo e de entrega (nas cenas amorosas na primeira metade do filme), ora objeto de degradação e de humilhação (nas cenas de ambos juntos em que Butterfly já está como homem).
A cena final de M. Butterfly é a redenção do personagem que, incapaz de entender o que se passou, torna-se ele mesmo o objeto de sua obsessão. "É melhor morrer com honra para não viver na desonra."
Como Ana Paula, acompanhei ansiosamente TWIN PEAKS na TV e vi em seguida O ÚLTIMOS DIAS DE LAURA PALMER, mas o filme ao contrário da série, não deixou nenhuma lembrança marcante.
ResponderExcluirM. BUTERFLY é o filme de Cronenberg de que mais gostei! Linara devia deixar-nos ler com mais frequência os seus escritos ;)
Segunda-feira tem mais, certo? *ansioso*
ResponderExcluirRafa, folgaremos esta semana, mas o Cinema a Dois volta dia 19. Valeu por nos acompanhar.
ResponderExcluirAbraços