sexta-feira, 18 de outubro de 2013

O Direito do Mais Forte é a Liberdade


A primeira sequência de O Direito do Mais Forte é a Liberdade surge poeticamente da feliz fusão entre situação e registro. Pessoas conferem as propagandas de um cerimonialista mambembe que anuncia certa atração espetacular a preços módicos, esta constituída de mulheres seminuas e “Fox – a cabeça falante”, suposto milagre da cirurgia moderna. A polícia chega e, assim, sem mais nem menos, quebra a encenação com um mandado de prisão, transformando a captura no espetáculo grátis pelo qual a plateia não pagou.  A partir daí, acompanharemos “Fox”, ou melhor, Franz Biberkopf, desempregado apostador da loteria habituado a encontros fortuitos em banheiros públicos.

Num desses encontros ele conhece o ricaço que o levará posteriormente ao empresário com quem não tardará a iniciar namoro. Logo que Franz ganha na loteria (sim, ele consegue), passa a frequentar os melhores restaurantes, as rodas culturais, aprofundando seu relacionamento com Eugen, esse herdeiro de firma praticamente falida.  Deslocado, o protagonista não parece o tipo a quem o dinheiro “enriquece”, pois lhe soa mais interessante qualquer drink em seu bar favorito que as idas à ópera, por exemplo. De início, temos Franz na conta de alguém malandro, um sobrevivente que se desloca pelo mundo fazendo o que bem entende, tendo quem quer. O dinheiro, mas, principalmente a relação com a burguesia, o faz gradualmente alguém frágil e passível de ser enganado. Dinheiro deixa de ser problema quando compra a felicidade, e Franz não se importa de adquirir o não almejado (ou aquilo que não precisa) se isso agradar seu amor.

Dirigido e protagonizado por Rainer Werner Fassbinder, O Direito do Mais Forte é a Liberdade é melodrama clássico, com as tintas carregadas de um Douglas Sirk (de quem Fassbinder era espécie de discípulo intelectual), mas com toques da peculiar pegada desse alemão, um dos responsáveis pelo ressurgimento do cinema germânico em dado momento. Fassbinder situa os personagens numa Alemanha fora dos padrões, repleta de ricos decadentes ou proletários frequentadores de espeluncas, desfraldando sua visão crítica acerca da hipócrita sociedade alemã de então.  A nudez masculina não é tabu, beijos entre pessoas do mesmo sexo tampouco. Inexiste o escândalo, pois os momentos de intimidade e afeto fogem de estigmas na diferenciação por gênero ou orientação sexual. Homossexual assumido, Fassbinder sempre militou pela igualdade.

O Direito do Mais Forte é a Liberdade é de 1974, e nele vemos muitas das causas defendidas nas temáticas recorrentes pelo prolífico diretor alemão, morto de overdose aos 36 anos e, conforme se conta, envolto constantemente em conturbados relacionamentos que se impregnaram em seu cinema. A derrocada de Franz, a humilhação por ele sofrida num estrato social estranho, a sensação de não-pertencimento, em suma, seu périplo, faz emergir uma série de subtextos: a reconstrução da Alemanha, a opressão burguesa, a liberdade sexual, a mulher talvez como símbolo da pátria ainda fracionada (aqui a irmã alcoólatra de Franz), tudo neste filme vigoroso que guarda o frescor e a importância dos envelhecidos apenas por fora.


Publicado originalmente no Papo de Cinema

2 comentários:

  1. Como são possíveis obras antigas manterem tamanho frescor? Anotado em minha lista /o/

    ResponderExcluir
  2. Sim, Rafa, esse tipo de atemporalidade é impressionante.

    Assista quando puder, acho que você irá gostar.

    Abraços

    ResponderExcluir