A primeira sequência de O Direito do Mais Forte é a Liberdade surge
poeticamente da feliz fusão entre situação e registro. Pessoas conferem as
propagandas de um cerimonialista mambembe que anuncia certa atração espetacular
a preços módicos, esta constituída de mulheres seminuas e “Fox – a cabeça
falante”, suposto milagre da cirurgia moderna. A polícia chega e, assim, sem
mais nem menos, quebra a encenação com um mandado de prisão, transformando a captura
no espetáculo grátis pelo qual a plateia não pagou. A partir daí, acompanharemos “Fox”, ou
melhor, Franz Biberkopf, desempregado apostador da loteria habituado a
encontros fortuitos em banheiros públicos.
Num desses encontros ele conhece o
ricaço que o levará posteriormente ao empresário com quem não tardará a iniciar
namoro. Logo que Franz ganha na loteria (sim, ele consegue), passa a frequentar
os melhores restaurantes, as rodas culturais, aprofundando seu relacionamento
com Eugen, esse herdeiro de firma praticamente falida. Deslocado, o protagonista não parece o tipo a
quem o dinheiro “enriquece”, pois lhe soa mais interessante qualquer drink em
seu bar favorito que as idas à ópera, por exemplo. De início, temos Franz na
conta de alguém malandro, um sobrevivente que se desloca pelo mundo fazendo o
que bem entende, tendo quem quer. O dinheiro, mas, principalmente a relação com
a burguesia, o faz gradualmente alguém frágil e passível de ser enganado.
Dinheiro deixa de ser problema quando compra a felicidade, e Franz não se
importa de adquirir o não almejado (ou aquilo que não precisa) se isso agradar seu
amor.
Dirigido e protagonizado por
Rainer Werner Fassbinder, O Direito do
Mais Forte é a Liberdade é melodrama clássico, com as tintas carregadas de
um Douglas Sirk (de quem Fassbinder era espécie de discípulo intelectual), mas
com toques da peculiar pegada desse alemão, um dos responsáveis pelo
ressurgimento do cinema germânico em dado momento. Fassbinder situa os
personagens numa Alemanha fora dos padrões, repleta de ricos decadentes ou
proletários frequentadores de espeluncas, desfraldando sua visão crítica acerca
da hipócrita sociedade alemã de então. A
nudez masculina não é tabu, beijos entre pessoas do mesmo sexo tampouco. Inexiste
o escândalo, pois os momentos de intimidade e afeto fogem de estigmas na
diferenciação por gênero ou orientação sexual. Homossexual assumido, Fassbinder
sempre militou pela igualdade.
O Direito do Mais Forte é a Liberdade é de 1974, e nele vemos
muitas das causas defendidas nas temáticas recorrentes pelo prolífico diretor
alemão, morto de overdose aos 36 anos e, conforme se conta, envolto
constantemente em conturbados relacionamentos que se impregnaram em seu cinema.
A derrocada de Franz, a humilhação por ele sofrida num estrato social estranho,
a sensação de não-pertencimento, em suma, seu périplo, faz emergir uma série de
subtextos: a reconstrução da Alemanha, a opressão burguesa, a liberdade sexual,
a mulher talvez como símbolo da pátria ainda fracionada (aqui a irmã alcoólatra
de Franz), tudo neste filme vigoroso que guarda o frescor e a importância dos
envelhecidos apenas por fora.
Publicado originalmente no Papo de Cinema
Como são possíveis obras antigas manterem tamanho frescor? Anotado em minha lista /o/
ResponderExcluirSim, Rafa, esse tipo de atemporalidade é impressionante.
ResponderExcluirAssista quando puder, acho que você irá gostar.
Abraços