sábado, 19 de março de 2011

Tetro, Te(a)tro e a autoralidade de Coppola


Francis Ford Coppola é um ícone do cinema mundial. Ao enfileirar os maiores realizadores desta que é chamada “a sétima arte”, como esquecer o homem que entregou ao mundo provavelmente a maior trilogia do cinema (O Poderoso Chefão) e um dos mais cruéis e geniais retratos de guerra em forma de filme (Apocalypse Now)? Isto somente para citar dois exemplos de uma carreira certamente cheia de altos e baixos, mas, na qual os altos são magnificamente compensadores. Porém, é notório que Coppola, dentro da revolução que ajudou a fomentar no cinema americano em priscas eras, queria mesmo era seguir a cinematografia idealizada na Europa, por Godard, Truffaut, Visconti, Fellini, entre outros. Ele continuamente foi um reverente do cinema artístico europeu, a antítese completa do predatório sistema de estúdios que rege a maior parte da produção norte americana. Sempre se ressentiu disso e, de uns tempos para cá, financiado por sua vinícola, vem fazendo os filmes que quer, pagando ele mesmo a conta, não dando satisfação a ninguém.

Segundo desta nova fase de Coppola, Tetro guarda muitas semelhanças com seus filmes pregressos, por mais que em termos de encenação, abordagem e construção narrativa, se aproxime mais do ideal cinemático de Coppola, do que de suas brilhantes criações sob a égide de Hollywood. De qualquer maneira, para ele não há outro assunto a discutir que não seja a família, e mesmo esta sua nova fase aponta para a permanência dos questionamentos inerentes a esta temática. Bennie é um jovem que desembarca na Argentina em busca do irmão Angelo, que sumiu do mapa, cortando laços com seus consanguíneos. Descobre um homem fragmentado, um animal acuado que agora se intitula Tetro, casado com uma bela esposa devotada, arredio quando convidado a reatar velhos laços. Bennie desestabiliza completamente Tetro, fazendo-o lembrar, rememorar partículas de um passado que ele preferia enterrado junto com suas aspirações artísticas, com sua vontade de ser grande e a relação paterna conflituosa, em suma, com tudo que o fez enlouquecer.

O que começa em Tetro como uma espécie de viagem rumo a um acerto de contas, pura e simples, vai ganhando contornos líricos, numa mistura de linguagens, encenações anti-naturalistas que, vez ou outra, quebram o paradoxal senso de naturalidade existente numa história visualmente construída com a intenção de expor o espetáculo, de se mostrar encenada, de refutar o natural. Coppola manipula a luz a olhos vistos, quebra fluxos com personagens que reagem mais instintivamente do que racionalmente, se utilizando também de uma primorosa fotografia para desenhar um embate denso entre luz e sombra. A luz aqui é figura dramática, representa ideais e frustrações, enquanto a sombra esconde, escamoteia reações, se faz cortina para que não vejamos inteiramente personas em momentos de extrema angústia. Experimentamos isto, esta angústia, ao passo que a história da família Tetrocini se revela sob a silhueta de uma opereta trágica, de um teatro expressionista ou mesmo de uma dança na qual os personagens caminham invariavelmente para a tragédia. Tetro é sobre a família, mas também sobre a arte, sobre a face inebriante do sucesso e suas promessas vazias de transcendência por meio da notoriedade.

Até mesmo os excessos de Tetro são perfeitamente cabíveis, e esta sensação de que o filme tudo pode, de que a ele é permitido todo e qualquer abuso, só é admissível atribuir às grandes obras, aos filmes que nos tocam num nível que não se restringe a epiderme. Coppola rege Tetro livremente, sem atrelá-lo à manuais de evolução narrativa, ou com qualquer centelha de medo, já que confere à sua mise-en-scéne um hibridismo perigoso, que quebra constantemente nossa percepção, mas que aqui se mostra elemento responsável pela amplificação da trama, das implicações psicológicas, dos termos que guiam os personagens e suas decisões. Se formos colocar em perspectiva, Angelo/Tetro, o personagem interpretado por um Vincent Gallo em plena forma, é como Michael Corleone na trilogia do chefão, o rebento que precisa se desvencilhar da figura paterna que lhe delegou um futuro do qual não gostaria de fazer parte, para tornar-se o chefe, o grão-mestre da linhagem que agora ele regerá a sua maneira. Aparentemente são personagens muito distintos, mas que sob um olhar mais rígido apresentam as semelhanças inerentes a sua origem, a mente criadora de um artista, um autor, que é fiel aos seus conceitos e ao que lhe é caro. Verdade seja dita, Coppola sempre foi um autor comparável a outros grandes mestres da história cinematográfica, mesmo na fase em que tinha de arrumar brigas homéricas com os poderosos da indústria para fazer prevalecer sua visão, quando quase enlouqueceu por conta da megalomania desvairada e de paixão por seus projetos. Em Tetro o que muda é sua liberdade, o registro formal, mas o ideário de Coppola segue intacto, a família segue como célula mater de seu cinema, tal como em algumas suas mais exuberantes realizações, categoria esta em que sua mais nova obra certamente se encaixa.

3 comentários:

  1. Belo texto. Gostei bastante de TETRO, e amo o cinema do Coppola, mesmo reconhecendo a existência de alguns filmes ruins do diretor (particularmente, não gosto de PEGGY SUE e COTTON CLUB, e acho TUCKER e THE RAINMAKER apenas ok). Mas, como você bem disse, os altos de sua carreira são magnificamente compensadores O meu problema com esse seu novo trabalho, no entanto, é que acho que a narrativa desanda para um artificialismo exagerado em sua meia-hora final, que acaba diluindo sua força dramática. Entendo seu argumento de que Coppola busca fugir de qualquer senso de naturalidade, mas mesmo a encenação soa poderosa dramaticamente durante mais da metade de TETRO. Mas acho o final melodramático demais, enfim.

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  2. Olá Wallace,

    Sabe, tive a mesma sensação de artificialismo do meio para o final de "Tetro", e até durante a projeção me perguntei o porquê de tal constatação não ter abalado minha conexão com o filme, com os personagens. Acredito que Coppola tenha sido tão eficaz na construção desta quimera, filha do naturalismo e do expressionismo, fruto de uma mistureba genial, que um ou outro excesso não me afastou, não me tirou da rota por ele proposta.

    Valeu pela leitura e pelo comentário.
    Abração

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  3. Olá, Celo!
    O seu comentário atesta uma obra realizada por alguém que domina o que faz. Vai para a lista de futuras visitas cinematográficas.

    Abraçosss

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