Veludo Azul é, provavelmente, o filme mais autoral e incisivo de
David Lynch. A pegada neo-noir, estilo admirado e substanciado pelo cineasta, sublinha
em cada personagem um caráter de feitura bastante pessoal, como se os mesmos
fossem talhados para servir demandas amorosas, pessoais e profissionais de seu criador.
A história, envolvente do início
ao fim, é revestida de sexualidade perturbadora e atmosfera suspeita, sendo
entremeada de cruéis aspectos capturados pela lente perversamente doce de um
Lynch ainda com os pés afixados na tênue linha entre o real e o onírico. Cada
detalhe, desde as almofadas de Dorothy Vallens até o número do apartamento
(710) e rua (7), faz semblante para o estilo de David Lynch, e condiz, por
assim dizer, com seus postulados. Alguns elementos bizarros, como a orelha num
gramado qualquer, perturbam o cotidiano da pacata Lumberton, antevendo figuras
perigosas, perversas e sádicas, tal o personagem vivido por Dennis Hopper que,
aliás, atua brilhantemente.
Ainda sobre as atuações, Veludo Azul (Blue Velvet, no original, título inspirado na canção de Bobby
Vintton, presente no filme), é prodigioso de interpretações surpreendentes. Só
mesmo alguém do calibre de Lynch para extrair de Kyle MacLachlan um rapaz
ingênuo, porém curioso e apaixonado, intimidado, contudo disposto a romper sua
fragilidade e imaturidade para, então, adentrar no mundo dos adultos. Da mesma
forma, Isabella Rossellini é presenteada não apenas com personagem complexa,
mas também com o tratamento imagético que confere a ela dimensão próxima do
etéreo. Méritos, sobretudo, da fotografia, quem sabe a mais elaborada da
carreira de David Lynch.
A cena final, quando Sandy (Laura
Dern, a musa muitíssimo bem aproveitada), em seu inabalável ideal de amor
eterno, avista um pintarroxo na janela diz: "Esse
mundo é estranho", é a quintessência da visão lynchiana. A jovem o faz com
sorriso nos lábios, compartilhando a excitação e a paixão descoberta por uma
vastidão até então impensada, ao mesmo tempo atraente e repugnante. A tríade,
perfeita por excelência, é estabelecida: Jeffrey, Sandy e a linda, louca e fugaz
Dorothy.
Com Gêmeos – Mórbida Semelhança, Cronenberg se insere num território
mais sofisticado, contudo não menos afinado às obsessões estilísticas que
marcaram sua criação pregressa. Nele, os gêmeos Mantle (Jeremy Irons, genial),
próceres ginecologistas dedicados a curar infertilidade feminina, aparecem, em
princípio, enquanto representação dual, ou seja, o irmão bom (Beverly) e o
irmão mau (Elliot). Bev, o introspectivo, se dedica à pesquisa, a alavancar a
fama dos procedimentos vanguardistas imputados aos dois, enquanto Elly, o
expansivo, recebe láureas, reconhecimento acadêmico e se incumbe dos discursos.
Eles compartilham mulheres,
valendo-se da irrefutável semelhança física. Num desses joguetes sexuais
corriqueiros, Bev se apaixona por aquela que involuntariamente iniciará o
doloroso processo de desunião dos “siameses”, libertando um do outro à fórceps,
ainda que eles próprios não queiram ou não possam de fato assim coexistir, pois
aleijados sem a ligação doentia cujo efeito é fazê-los complementares. O
processo de degeneração mental dos irmãos logo mostrará que Gêmeos – Mórbida Semelhança apenas se
valeu da polarização inicial entre os protagonistas para que a fusão traumática
de ambos - fadados a sofrer na pele os vícios e as virtudes alheios - tivesse o
efeito devastador visto antes da derradeira e trágica separação.
Um dado interessante sobre Gêmeos – Mórbida Semelhança diz respeito
à utilização expressiva da cor, principalmente o vermelho, para estabelecer
conexões entre o horror do sangue derramado em nome da ciência e o mesmo
líquido vital que, de outra forma, escorre de crimes e demais brutalidades. Exemplo,
a equipe cirúrgica dos irmãos Mantle veste jalecos encarnados, ao contrário do
branco característico da medicina. O vermelho não deixa notar o sangue. Ótima e
inesquecível sacada visual de Cronenberg. Da mesma maneira, Lynch se apropria
do azul, aqui como referência cromática do subterrâneo que emerge violentamente
na vida dos estadunidenses interioranos de Lumberton. Tida como sinônimo de
tristeza, a cor em Veludo Azul alude,
também, ao estado psíquico abalado de Dorothy, figura emoldurada pelo azul da
decoração e iluminada pelas luzes da ribalta decadente.
A sexualidade desempenha papel
fundamental tanto em Veludo Azul,
quanto em Gêmeos – Mórbida Semelhança,
muito embora Lynch e Cronenberg não se apropriem de cenas explícitas, deixando
as observações acerca do sexo, e a função por ele desempenhada de elemento
deflagrador, na esfera do subjetivo, como conduto de ações e reações. Há, em ambos os filmes, forte apelo à questão
inconsciente, isso visto, sobretudo, nas sequências de sonhos: em Veludo Azul, o sonho de Jeffrey (sua
amada pede para ser espancada e ele a satisfaz) revela a carga de sadismo por
trás da satisfação de prazeres primitivos e proibidos; já em Gêmeos – Mórbida Semelhança, o sonho de Beverly
(sua amada literalmente separa-o do irmão, a dentadas), prenuncia a turbulenta
tentativa de desligamento parental.
Outo fator de aproximação entre
os longas é a relação simbiótica, paradoxalmente complementar. Embora esta seja
mais evidente em Gêmeos – Mórbida
Semelhança, em Veludo Azul
Jeffrey e Frank são partes quase indissociáveis de um indivíduo “completo”,
faces da mesma moeda. A ingenuidade Jeffrey se funde à maldade de Frank nas
fantasias de Dorothy, ou seja, “sozinhos” não satisfazem o desejo avassalador
dela, porém juntos a levam ao êxtase.
Por Ana Carolina Grether e
Marcelo Müller
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VELUDO AZUL – Por Isadora Ramos
Veludo Azul foi o segundo filme de Lynch que vi, há uns dez anos.
E, naturalmente fazendo uma comparação com o primeiro, Cidade dos Sonhos, lembro-me de ficar surpresa, pois o roteiro era
muito mais compreensível, porém, não menos intenso e estranho. À época foi
chocante ver a cidade aparentemente perfeita como cenário de todo o tipo de
crime e violência, igual a qualquer outro local onde os gramados não são tão
verdes e bem cortados. Tem "doença" ali, como em qualquer outro
lugar. E, apesar da linearidade na história e do "final feliz",
fatores que não esperava encontrar, fiquei por dias lembrando da perversidade
de Frank e pensando na tristeza de Dorothy, com uma sensação de inquietude.
Dennis Hopper e Isabella Rossellini estão brilhantes e chegam a dar arrepios,
por motivos diferentes, mas vale ressaltar que todos os atores estão bem em
seus papéis.
Tentei não usar a palavra
"estranho", seus derivados e sinônimos neste texto e falhei
miseravelmente. Não é muito original classificar um filme de Lynch assim, eu
sei, mas que outra palavra melhor? Me sinto estranha ao ver seus filmes. Durante
e depois. Estranha, inquieta, intrigada. Com Veludo Azul não foi diferente. Mas acho que aqui, mais que em
qualquer outra de suas obras, o adjetivo cabe, afinal os próprios personagens
concluem que "é um mundo estranho". Pra mim, é um dos filmes mais fáceis
de compreender deste diretor, mas não por isso fácil de esquecer.
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Este não é o único filme no qual
David Cronenberg declara todo o seu fascínio pelas entranhas do ser humano,
literalmente falando. Porém, em Gêmeos -
Mórbida Semelhança, ele vai além das vísceras para narrar a história de
dois irmãos gêmeos que, diferente do que a versão abrasileirada do título
sugere, tem mais diferenças do que sua semelhança física nos permite ver.
O que une os ginecologistas Bev e
Elly (interpretados por um impecável Jeremy Irons) são justamente as sua
diferenças. Os irmãos são como características complementares e distintas que
residem dentro de cada um de nós, nos tornando indivíduos únicos e complexos.
E, assim sendo, os dois vivem como apenas um, compartilhando sucesso,
experiências e, principalmente, mulheres. Mas, é justamente a relação com uma
paciente que desestabiliza a harmonia entre os gêmeos: Bev se apaixona pela
atriz Claire Niveau, de quem Elly queria apenas algumas noites de prazer.
O rompimento é explicitamente
representado num pesadelo de Bev, onde os médicos são siameses e Claire destrói
com os próprios dentes a carne que os une pelo abdômen. É um sinal que o sangue
já não consegue mantê-los do mesmo lado. Aliás, o uso pontual de elementos
vermelhos durante todo o filme, que tem uma fotografia predominantemente fria,
parece predizer que algo não terminará bem. Em suma, tanto nos filmes como na
vida, algumas coisas são opostas mesmo tendo muito de si uma na outra: assim
são Bev e Elly, assim são amor e ódio.