quinta-feira, 22 de agosto de 2013

CINEMA A DOIS | OS DAVIDS - A Estrada Perdida e Crash - Estranhos Prazeres


A Estrada Perdida se abriga sob a égide onírica criada por David Lynch. Tal moldura, estilo entre o surreal e o enigmático, seria novamente vista em trabalhos sequentes, como Cidade dos Sonhos e Império dos Sonhos. Podemos dizer que o filme em questão se divide em duas partes demarcadas pela transmutação do protagonista, e, por conseguinte, da trama. Na primeira delas, Fred (Bill Pulman) mata a mulher, Renée (Patricia Arquette), mas curiosamente nada lembra quando interrogado. O contexto conjugal pré-crime é feito do homem inseguro frente a esposa sedutora, esta, porém, fria e lacônica, paradoxos que reforçam nele o desconforto permanente. Lynch mostra sintomas complementares, mantém a relação do casal na base ora da neurose, ora da excitação.

Na segunda parte, surge Pete Dayton, rapaz jovem, mecânico que mantém caso com Alice, esta também interpretada por Patricia Arquette. Ela é mulher de Dick Laurent, gângster perigoso e sádico, desconfiado da traição. Os devaneios e delírios contumazes de David Lynch aparecem claramente quando Alice e Pete perdem as rédeas em pleno deserto. Ali vemos luxúria, ímpeto incessante, gozo obsceno (ainda sutil) no rapaz cuja projeção paterna é o gângster, e na mulher que obtém prazer ao suscitar angústia nos homens desejantes. Por sua vez, Dick Laurent utiliza o poder para exercer sadismo em quem o venera e teme.

A Estrada Perdida é autêntico road movie. Mas estamos falando de David Lynch, cineasta subversor de gêneros. Portanto, poderíamos classificar A Estrada Perdida como road movie às avessas, pois nele a estrada é bloqueada, impedida e proibida. Não fica claro onde o caminho vai dar, mal conhecemos o ponto de partida, e o de chegada explicita-se tal enigma, aliás, arredio a soluções. A estrada de Lynch corta com violência alucinações, sonhos, projeções e frustrações, em suma, conduz irremediavelmente à perdição.

Baseado no livro homônimo de J.G. Ballard, Crash – Estranhos Prazeres parte de determinada sequência tão erótica quanto estranha, portanto, plenamente de acordo com o restante do filme. Catherine Ballard (Deborah Unger), loira cuja sensualidade transborda ao menor movimento, repousa os seios na asa de um avião, excitando-se em contato com a máquina enquanto é penetrada por trás. A descrição não é mais precisa que a feita pela própria Catherine a seu marido, James Ballard (James Spader). Dentro de uma lógica matrimonial bastante particular, ele, por sua vez, responde à esposa sobre o sexo com a assistente, inclusive os pormenores.

Após colisão de consequências fatais ao outro motorista, James passa a cultivar tara por acidentes de carro, tomado por estranha sensação inserida no limiar entre sexo e finitude. Daí a conhecer outras pessoas cujo desejo trafega por vias semelhantes é um pulo. Cronenberg filma Crash – Estranhos Prazeres perscrutando fetiches que elevam o hedonismo a única filosofia possível para a realização plena dos seres. A vida, tão frágil e volúvel, é moeda de troca para chegar às vias do prazer supremo, sem as quais, segundo alguns, não valeria a pena viver. Os eventuais danos físicos podem servir, inclusive, de entrada numa nova era, onde o corpo seria melhorado pela intervenção da ciência. Ou seja, nada mais cronenberguiano.

A convivência entre pulsão de vida e pulsão de morte faz Crash – Estranhos Prazeres sobrepujar seu imprescindível caráter erótico (as cenas de sexo são muito bem filmadas e bastante excitantes), pois o coloca num patamar onde se aprofunda a investigação das necessidades humanas para além da mecanicidade fisiológica. O carro, elevado a fetiche social desde sua invenção, é a armadura que, paradoxalmente, protege e expõe nossa fragilidade enquanto seres orgânicos.

Tanto A Estrada Perdida quanto Crash – Estranhos Prazeres mostram a transgressão como elemento de prazer, no primeiro, perverso, e no segundo, fetichizado. Em ambos, o sexo é constante e primordial à interação dos personagens, embora algo periférico se submetido às mais agravadas mazelas mentais dos mesmos. Se para Lynch o sexo é instabilidade violenta, choque constante de prazer e dor, para Cronenberg é álibi ao hedonismo inconsequente. O, por assim dizer, elemento “Arquette” também aproxima os longas. Patrícia Arquette perdida entre suas personagens lynchinianas e Rosanna Arquette, mulher-biônica tipicamente cronenberguiana.

Os dois filmes marcam a entrada de seus diretores numa estética contemporânea, sofisticada. A Estrada Perdida transfere o onirismo que Lynch fez emergir antes nas pequenas e pacatas cidades para a urbanidade caótica, tornando-a, assim, mais caótica ainda. Já Crash – Estranhos Prazeres possui estilo apurado, sóbrio, em contraste com os apelos visuais (positivos) próprios à filmografia anterior de Cronenberg. Eles guardam outras semelhanças, por exemplo, nos acidentes automobilísticos. Ainda que tal incidência seja bem mais relevante no filme do canadense, Lynch utiliza-a para determinar uma transição importante.

Mas há também alguns pontos que diferenciam bastante as realizações. Em A Estrada Perdida a perversão mascara a neurose dos personagens. Em Crash – Estranhos Prazeres a narrativa se constrói sobre o prazer que efetiva e verdadeiramente aquele grupo experimenta ao reconstituir acidentes automobilísticos. De certa forma, eles caminham ao fim inevitável, considerando suas naturezas destrutivas. David Lynch denuncia os inconscientes presentes, as camadas ocultas, desejos, o que os personagens fariam por amor ou dinheiro. Cronenberg mostra a patologia daquele grupo, nua e cruamente. As figuras são assim, e ele enquanto diretor não problematiza isso, apenas expõe.

Em Crash – Estranhos Prazeres há visceralidade, a "verdade" potencializada na doença, traço inexistente em A Estrada Perdida. De fato, um é neurótico e outro é psicótico; um é loucura e o outro é o desejo inconsciente de ser louco. “O sonho de todo neurótico é ser perverso", poderia bem ilustrar A Estrada Perdida.

Por Ana Carolina Grether e Marcelo Müller

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A ESTRADA PERDIDA – Por Bianca Siqueira 
Este filme nos convida a compartilhar alguns momentos da estrada percorrida por Fred (Bill Pulman) numa viagem ao seu mundo de significados e significações. Neste mundo onírico, simbólico, a linguagem e a comunicação se dão pela representação desses símbolos. O percurso do Fred é o resultado destas representações como: seus medos, suas angustias. É através destas representações que seguiremos pelo caminho "perdido".

O local onde este personagem está, assim como suas ações e reflexões, o expõe para a sua consciência (luz). A dialética se dá com elementos e objetos que o revelam.
A câmera intimista, a mão que aceita a sua impotência, o salto alto da Renée em todas as circunstâncias, o aprisionamento dentro do corpo angustiado, inseguro, ou a fuga deste mesmo ser ao encontro da liberdade em outro corpo (através do jovem mecânico), novas possibilidades para a vida amorosa, são algumas destas revelações que seu eu encapsulado em Fred tenta decodificar e transformar . 
Mas seu retorno, ao mesmo símbolo de fraqueza diante da impermanência das coisas, vai se construindo e o encontro com o mensageiro desta fatalidade se dá, novamente. Seus medos, inseguranças, desejos, violações, são expressos por ações, imagens, sons, palavras que encontramos por esta estrada afora. O caminho por onde Fred se encontra ou se imagina está cheio de perigos. Afinal a vida é cheia destes perigos! 
Ele está inseguro com relação a Renée, e a encontra como Alice ( talvez no país das maravilhas) que, a princípio, o fará se sentir único, especial, mas logo adiante ele terá que passar pelo mesmo local de onde partiu: insegurança, infidelidade, perdas. 
Ele se dá conta deste inferno de dúvidas e impotências e o seu eu se volta para o mesmo (Fred), para sua casa e lá deixa um recado que chegará logo logo a sua consciência: Dick Laurent está morto! Este recado é o que dá início as suas investigações. Quem é Dick Laurent?
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A ESTRADA PERDIDA – Por Pablo Gonzalez 
Veja bem essa estrada, algo vai mudar. É segredo. Pode ser dito sob a forma: Dick Laurent está morto. A morte e o sexo aceleram meu coração. Você acelera meu coração. Estou apaixonado, cuidado. Filmar um tiro é dar um tiro? Não é qualquer pessoa que trabalharia com Marilyn Manson. Somos moléculas comunicantes. Isto passa por você? Atenda esta ligação e me obedeça, você não será mais a mesma. Loura ou morena, tanto faz, meu segredo te transformará. Fred e Pete são meus nomes, eu tenho a minha vida. A polícia é palhaça. Trabalho com consistência violenta para imagens atraentes. Vem que eu vou te mostrar que não sou um só e que há muita coisa entre eu e você. Não é pra entender, é pra calar a boca e berrar. Vem fugir comigo, caia na minha armadilha. Extremo oriente, execução... Extremo ocidente, execução... Você vai conhecer um grupo secreto de sadomasoquistas traidores. Lembre-se: não existem coincidências ruins. Como é seu nome mesmo? Renée? Alice? Vou confundir seu julgamento. Pornô, videotaping, paranoia. Venha conhecer a genealogia da dor. E no final você vai me dizer o que foi que mudou na estrada...
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CRASH – ESTRANHOS PRAZERESPor Luciano Marra
Em termos lógicos, desde Aristóteles houve a separação clara entre meios e fins. Por mais redundante que pareça, objetos humanos, salvo os sacralizados, totêmicos ou artísticos, todos 'serviam a...', isto é, eram meios para atingir um fim. No entanto, já no sec. XX, com a produção industrial acelerada com a estratégia fordista, bens de consumo  só teriam saída se a demanda acompanhasse o incremento da produção. 
Caso a procura desses objetos se pautasse no uso, a procura seria mais lenta, dado nosso ritmo biológico, e a indústria morreria por encalhe de estoque. Daí que as lições do nazismo foram deslocadas para a publicidade. Passaram a fluir uma avalanche de imagens a fim de mistificar objetos de consumo e incrementar vendas. Da perspectiva eurocêntrica, o consumidor branco-padrão, o caso mais emblemático dessas lições é o do automóvel, no qual ele deixa de ser objeto de uso para se tornar um fim em si mesmo, já mistificado pelo jogo de imagens despejados na população urbanizada. Como dito antes, isso acontece se o objeto de alguma maneira se prestar ou ao culto, ou ao deleite. Caso sirva ao deleite, teremos um caudaloso desvio da libido em direção a um objeto morto, o que outrora fora tipificado como anomalia, o já puído fetiche sexual.

Em Crash – Estranhos Prazeres, Cronenberg leva ao extremo a hipótese da aceitação generalizada da proposta publicitária e causa enorme desconforto na classe média britânica ao ironicamente normalizar, numa acepção foucaultiana, tornar "normal", a intermediação dos prazeres por objetos de consumo. Criou um filme em que esta aberração em curso desde a década de 50 ganhou ares de 'mal-estar-da-civilização' da classe média consumista. E até hoje é amado-odiado pelo feito, cuja cena inicial é uma mulher loira sendo comida por trás ao mesmo tempo em que se esfrega na lataria de um avião.

4 comentários:

  1. Marcelo e Carol... Qual de vcs escreveu "...poderíamos classificar A Estrada Perdida como road movie às avessas, pois nele a estrada é bloqueada, impedida e proibida." Gostei muito desta colocação.

    Mais um belo trabalho!

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  2. Mana!! fui eu...nao sei bem como nem quando(em que momento hehe). Esse filme é mto especial pra mim. Adorei revê-lo pra essa edição do Cinema a dois. E essa coisa da estrada pode ser vista em outros filmes do Lynch..ele sempre que pode insere a imagem de uma estrada, que nesse caso...pra mim ficou como a estrada impedida por conta dos personagens não realizarem plenamente o seu curso,por não conseguirem saír da estrada..etc. Obrigada pela leitura assídua :) Isso motiva bastante! beijao

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    Mesmo grande..os comentários sobre os filmes ficaram muito legais. Não sei se todos concordam, mas o resultado final se torna muito mais interessante em virtude da diversidade de olhares, percepções.
    Luciano, sua visada sobre " Crash" ficou bemm legal, singular.. . E Bianca, sua paixão pelo filme transbordou no texto!! maravilha.
    beijos

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  3. Impressionante!
    O nível de discussão, mesmo em textos pequenos, está de encher os olhos. Parabéns ao projeto e a todos que têm contribuído de maneira gloriosa.

    Grande abraço

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  4. Fiquei com vontade de ver "Crash" ...

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