quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Doses Homeopáticas #36


O ABUTRE é um daqueles filmes que chegam devagar, sem fazer muito barulho, sem grandes coberturas prévias, e que mostram por que está redondamente enganado quem estereotipa o cinema norte-americano com base nos grandes sucessos de bilheteria. O diretor estreante Dan Gilroy monta uma trama de interesse constante sobre os meandros da imprensa marrom, evidenciando como ela, principalmente seu sucesso, espelha os anseios do espectador, então cúmplice das ações do protagonista. Jake Gyllenhaal desempenha o melhor papel de sua carreira como esse aficionado por teorias corporativas que entra no ramo do sensacionalismo sem medo de sujar as próprias mãos de sangue. Ele quer reconhecimento, quer ser alguém nesse mundo em que somos praticamente obrigados a ser alguém. Da jornalista que alimenta a fome voraz de Lou pela tragédia, ao espectador que a empanturra com altos índices de audiência, todos são culpados nessa cadeia que se retroalimenta. 


O PRIMEIRO ANO DO RESTO DE NOSSAS VIDAS se debruça sobre a velha (e sempre atual) questão que aflige todo jovem: a escola acabou, e agora? Perseguir uma carreira bem-sucedida, o amor, as amizades, tentar conciliar tudo isso? Joel Schumacher se insere naquela vertente que John Hughes tão bem soube explorar, a de falar de e para adolescentes e jovens adultos, abordando suas dúvidas, anseios, limitações, e por aí vai. Aqui temos desde o cara que cita Woody Allen e fica obcecado por uma médica até aquele meio desgarrado que pula de emprego em emprego magoando quem está próximo. Os personagens percebem que não é fácil crescer, ver as responsabilidades pesarem de uma hora para outra nos ombros, ainda mais quando há um monte de gente dizendo a eles o que devem ou não fazer. Como se fossem insuficientes as próprias cobranças, eles têm de lidar com as que vêm de fora. Um tipo de filme que não se vê mais muito por aí.


CLEAN começa expondo os excessos muitas vezes associados aos artistas. A personagem de Maggie Cheung perde o marido de overdose, vê-se presa por porte de heroína, em suma, tem a vida escangalhada. O diretor Olivier Assayas estuda a intimidade dessa protagonista à deriva, num filme em que ficamos suspensos à espera de eventos que mudem as coisas, viradas drásticas, algo assim. Isso não ocorre por acaso, afinal o francês constrói uma atmosfera que alude a certo filão do cinema norte-americano, brincando com seus códigos para beneficamente frustrar nossas expectativas viciadas. O que importa mesmo é acompanhar a oriental que ruma pela Europa por novas chances, de trabalho, de ligações sentimentais, enfim, querendo reconstruir-se. Autodestrutiva, ela quer reaver o filho, mas é difícil a luta que empreende contra os vícios. Nick Nolte interpreta seu antigo sogro, homem simples, austero, mas que a ajuda. Não se trata de redenção, o passado fala por si, mas de uma segunda chance, tema tão caro à Hollywood, mas dificilmente abordado com tamanha sensibilidade.

8 comentários:

  1. Muita vontade de ver O Abutre e de rever o 1o ano do resto de nossas vidas!!!! Muito legais as resenhas!

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    1. Quando puder, assista mesmo "O Abutre", Carol, pra mim é um dos melhores filmes do ano passado.

      Beijos

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    2. Adoro essas doses homeopáticas que oferecem, como efeito colateral, a vontade louca de sair correndo pro cinema rs. Valeu, Marcelo!

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    3. Obrigado, Ana Lúcia
      Muito bom poder contar com sua leitura

      beijos

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  2. Pausas interessantes para uma reflexão. Também adoro este método da crítica em doses. E sobre o ABUTRE, tive a impressão que o personagem do Jake Gyllenhaal seria intragável e repudiado ao longo da sua escalada. Mas, pelo contrário, sua dose de insanidade é tudo que ele precisava para se dar bem. Esta moral ( amoral) da história é desconcertante porém completamente aceitável para nós expectadores dentro e fora da sétima arte. Dura constatação! Bjos Marcelo

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    1. Obrigado, Bianca
      Verdade, como tu disse, o protagonista de "O Abutre" consegue "virar alguém" justamente em virtude de sua falta de escrúpulos, ou seja, o filme aí lança uma crítica à própria engrenagem social. Claro, é uma alegoria, mas que acaba resvalando fácil na realidade.

      Beijos

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  3. Celo!
    Sempre bom ler essas pitadas, ainda mais quando abordam filmes interessantes.
    Obrigado, guri.

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