domingo, 15 de março de 2015

A complexidade de "12 Anos de Escravidão"


Vitorioso na categoria “Melhor Filme Dramático” no Globo de Ouro deste ano, 12 Anos de Escravidão, do britânico Steve Mcqueen, é um filme importante. A saga do negro alforriado Solomon Northup (Chiwetel Ejiofor), sequestrado e vendido a fazendeiros sulistas, mostra muito bem os desmandos de uma raça, a branca, que, autorizada pela lei então vigente, reduzia seus semelhantes negros ao equivalente animal nas fazendas. Mais do que estudo acerca do racismo institucionalizado, o filme é uma importante peça de exposição da crueldade humana. A despeito dos que acham tudo meio maniqueísta e fácil, vou tentar neste artigo expor o porquê acredito na complexidade do trabalho de Mcqueen, tanto no que tange a abordagem social quanto no desenvolvimento dos personagens, como grande responsável pelo êxito do filme.

Comecemos pela questão do escravo em seu contexto de exploração. O longa mostra a brutalidade absurda que mediava a relação do branco, seja ele “mestre” ou agregado, com os escravos negros. As cenas de tortura física, mais precisamente as de açoites, são realmente pesadas, mas não se sobressaem em impacto à gradual desmoralização dos escravos no dia a dia, sobretudo no que diz respeito à diminuição de sua individualidade e o aniquilamento de qualquer traço não pertinente ao trabalho braçal. As pessoas valiam conforme a colheita diária do algodão e tudo que fosse além era considerado perigoso. Não é apenas a chibata que enfraquece os negros. Violentar a integridade de alguém passa também por torná-lo comum, massa de manobra uniforme, e essa consciência demonstrada por Mcqueen é um dos pilares de 12 Anos de Escravidão, potencializa o impacto das agressões físicas, pois as alimenta de ódio e outros venenos.

A matéria-prima dos personagens, ou seja, do que eles são feitos, é outro elemento destacável. Discordo totalmente de alguns que veem as figuras como estereotipadas e/ou vítimas do maniqueísmo. Os capatazes e os senhores da fazenda não me parecem arquetípicos - ao menos não todos - pois dotados de nuances particulares. O fazendeiro Edwin Epps, por exemplo, não é pura e simplesmente um retrato extremo da maldade, ainda que tenha essa “função” em determinadas passagens. A relação conturbada com a mulher tão ou mais autoritária que ele, me parece conferir densidade a esse tipo que alguns teimam em enxergar apenas numa dimensão. Quando castiga a negra por quem se afeiçoa, para citar uma sequência capital, ele está punindo a si próprio por não conseguir fazer valer sua vontade diante da esposa. Ali está o retrato de um homem derrotado, frustrado, poderoso apenas diante da classe considerada inferior.

Já Solomon trilha um caminho de pequenas tragédias desencadeadas a partir do momento em que perde a liberdade e se vê apartado da família na mais desesperadora insegurança dos dias. Se no início ele refuta a “sobrevivência”, alegando estar mais inclinado a “viver”, com o passar do tempo, e mediante a falta de qualquer perspectiva de salvação imediata, ele engole a própria convicção, aceita o novo batismo, sujeita sua arte às festas na Casa Grande, esconde a faceta letrada e culta, para, justamente, sobreviver. Nos anos em que volta à escravidão, Solomon dança conforme a música para, quem sabe, um dia reencontrar sua família, sem que para isso haja lamúria excessiva ou rendição à melancolia. Esse discernimento o faz resistir enquanto muitos sucumbem. Sua relação com Epps é como uma inversão de superioridade, pois, enquanto o fazendeiro é um homem moralmente derrotado, porém poderoso em virtude da posição social ocupada, Solomon é rebaixado pela escravatura, contudo elevado na comparação, pois perspicaz e mais estruturado psicologicamente, quem sabe por estar ancorado num propósito vital.

O cineasta Steve McQueen combina, assim, em 12 Anos de Escravidão a crítica social contida em seu primeiro filme, Hunger (2008), com o estudo minucioso de personagem visto no segundo, Shame (2011). 12 Anos de Escravidão é uma realização necessária, pois, para além de promover uma leitura admirável no que diz respeito à escravatura, mostra a complexidade que alimenta o lado mais sórdido do único animal que, enquanto amparado pela lei, maltrata seus semelhantes sem dó nem piedade.


Publicado originalmente no Papo de Cinema

Um comentário:

  1. Muito bom, Celito!
    Adoro esse filme, e como bem destacou, também acredito na força dos personagens enquanto motor à narrativa, cujo combustível está justamente nas relações hierárquicas estabelecidas no decorrer do longa.

    Forte abraço.

    ResponderExcluir