domingo, 24 de janeiro de 2010

Amor sem Escalas

Direção: Jason Reitman
Roteiro: Jason Reitman e Sheldon Turner, baseados no romance de Walter Kirn
Elenco: George Clooney, Vera Farmiga, Anna Kendrick, Jason Bateman, Amy Morton, Melanie Lynskey, J.K. Simmons, Sam Elliott, Danny McBride e Zach Galifianakis

Tem gente que adora, qualquer brecha na agenda profissional é motivo para uma, não conseguem viver sem. Já alguns odeiam, dariam um rim para conseguir ficar mais no chão, evitar transtornos de check-in, extravio de malas, voos atrasados, barrinhas de cereal como brinde, estas coisas. É a velha questão do ponto de vista. Ah, e há ainda os que, independente de gostarem ou não, precisam, pois as viagens são parte do seu trabalho, elemento sem o qual sua labutas diárias seriam inviáveis. Assim é Ryan, protagonista de Amor sem Escalas, do diretor Jason Reitman, um homem de meia idade que viaja mais de trezentos dias por ano cruzando o mapa americano, indo de cidade em cidade, desempenhando um papel nefasto para alguns, mas que para ele é uma atividade como qualquer outra. Questão de ponto de vista. Ryan despede pessoas, ele faz o trabalho sujo do empregador que não tem coragem de despedir seus funcionários. Ryan é como a visão da morte em tempos de crise econômica, só que sem a foice que tanto caracteriza a figura romântica que temos daquela a quem todos encontrarão um dia. Ryan é mesmo como um espírito de Tanatos que ceifa os empregos, que tira a perspectiva de futuro, mas tal como a morte, é bom que se entenda que Ryan é só uma parte da engrenagem, ele é somente um executor.

Ryan, interpretado com classicismo por George Clooney, é pragmático, sabe de cor quanto demora para fazer um check-in, tem diversos cartões de crédito que, pela sua frequência em aeroportos e hotéis, o enchem de regalias, de filas especiais, das facilidades de um homem moderno. Ele não odeia pessoas, está longe de ser um eremita, como ele mesmo diz em determinada parte do filme, mas não suporta as conexões, os elos que caracterizam os relacionamentos. Tanto é verdade que Ryan dá um tipo de palestra onde defende que para que tenhamos sucesso na vida, não podemos carregar muita coisa na mala, e por “coisa” entenda desde seus bens materiais até as ligações afetivas que, segundo ele, pesam e não te deixam sair do lugar. Ryan é uma representação da sociedade atual, não que isso seja ruim, deixemos o saudosismo de lado, é apenas diferente. Algumas coisas mudam para Ryan quando ele vê tanto sua forma de vida, a qual ele ama incondicionalmente, ameaçada pelas ideias de uma novata de sua empresa e pelo apego a uma mulher que parece ser ele mesmo, só que dotada de uma vagina (outra vez aqui me aproprio de uma citação do próprio filme).

Amor sem Escalas mostra um Jason Reitman mais seguro de si, mais ciente de suas opções e do rumo que quer seguir com seu cinema, num equilíbrio interessante entre o independente e o comercial. Paradoxalmente, é nesta segurança que reside a maior armadilha do filme, na intenção de apresentar uma narrativa mais palatável que, seguramente, vai devolver seu investimento. É como se a segurança alcançada pelos trabalhos anteriores, bem no fundo, tivesse trazido certa zona de conforto a Reitman que, em busca de não dar um passo em falso, procurou amenizar alguns desdobramentos, o que não ocorreu em Juno, por exemplo, seu filme mais completo e coerente. O personagem de Clooney, tão interessante, tão diferente dos centros da maioria dos filmes que tem o relacionamento como norte, passa por uma transformação um tanto quanto abrupta, como se na metade final Reitman fizesse um pedido de desculpas formal por ter relativizado a importância da tradicional visão de família para o desenvolvimento de um ser humano feliz e pleno.

Amor sem Escalas é um destes filmes que lançam luz sobre um personagem verdadeiramente moderno, fruto das novas (não tão novas assim) relações interpessoais, definições atuais de relacionamento, atualizações em um clique, estas coisas que, para alguns sinalizam o fim dos tempos (a estrutura familiar como sendo o epicentro deste terremoto sociológico) e para outros são só as mudanças inerentes a qualquer evolução. É um filme esperto em mostrar este personagem, um humanista a despeito de sua visão das conexões, se relacionando com uma executiva-robô, destas que o mercado exige e que são expelidas/expelidos das faculdades, e uma versão feminina sua, que o mostrará a própria fragilidade. Ryan, seu protagonista já tão detalhado acima, é um personagem fascinante, que cativaria sem precisar das óbvias curvas morais que o cinemão volta e meia nos enfia goela abaixo. Com isso não quero dizer que o comportamento retilíneo de um personagem denote a boa construção do mesmo, mas vamos convir que mudanças radicais e/ou transformações repentinas baseadas na ideia romântica do “amor vence tudo” não são verossímeis, nem aplicáveis com organicidade em qualquer narrativa que queira ser mais que rasa. E é aí que reside o fator decepcionante de Amor sem Escalas, no trajeto desnecessariamente curvilíneo (no sentindo de "desvio de foco") que toma, nas concessões que faz, sutilmente a partir do terceiro quarto do filme e descaradamente na parte final, e que tiram, se não o prazer em ver o filme, mas a possibilidade de ver uma obra mais coerente e incisiva.

Obs.: Para textos mais ricos e analíticos sobre o filme (o meu acabou muito detido em certos aspectos) recomendo a leitura dos excelentes textos de Kleber Mendonça Filho e Luiz Zanin.


4 comentários:

  1. Olá, Celo!
    Gostei do seu texto, bem bacana mesmo. Mas sobre o filme, que é na verdade o que interessa aqui, não vejo com olhos imbuídos de crítica negativa o que você apontou. Acredito que Reitman consegue uma abordagem natural e o distanciamento focal do protagonista, à mim, se caracteriza como uma tentativa frustada de ir contra o que ele pregou a vida toda. O ser humano, por vezes, tem um sentido aventureiro e, talvez fragilizado como estava, pego de surpresa por uma situação negada até então por ele, busca alternativas ao que entende por ideologia de vida. Talvez essa, somadas obviamente à outras, formam um quadro que o impeliu na mudança de ação, não de pensamento, como verificamos ao final da projeção.

    Abraçossss

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  2. Olá Celo!
    Como conversamos há alguns dias, vimos pontos em comum desnecessários à "Amor Sem Escalas", mas para mim a totalidade do filme faz ignorar seus pequenos problemas, como o final previsível ou as pequenas entrevistas com desempregados norte-americanos (que me lembrou as novelas de Manoel Carlos, confesso). Para mim, o que se destaca em Amor Sem Escalas é a capacidade de Reitman em desenvolver um filme amargo (com aparência agridoce) e triste que demonstra a realidade dos relacionamentos humanos na contemporaneidade, que, como analiza o sociólogo Zygmunt Bauman, estão cada vez mais líquidos e descartáveis, destinados à suprir necessidades mesquinhas e egocentricas. Enfim, "Amor Sem Escalas" é, para mim, um ótimo filme, desses que reverberam muito além de seu tempo de projeção.

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  3. Sabe Kon, eu não acho que este seja um filme triste ou mesmo amargo, por conta da vida que o protagonista leva. Pode ser pela questão social, pelo desemprego, isso sim. Muito se fala nestas novas relações descartáveis, mas elas nem são tão novas assim para que, a cada exemplar ficcional se evoque os "novos tempos". Acho perfeitamente cabível que um homem, ou mesmo uma mulher, não tenha uma visão romântica da vida, que não queira se relacionar, o que a primeira metade do filme prega. O que me desestabiliza como espectador, é ver que esta aparente visão mais abrangente das "novas relações", sem o tom apocalíptico ou ares de naftalina, acabe por fraquejar num final até saudosista, que aponta para uma formatação das relações, um enquadramento. Em suma, acho que o filme começa muito bem, mas tem um encerramento dissonante.

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  4. Sim Celo, tais relações descartáveis são consideradas novas em nossa sociedade, se desenvolvem com a evolução tecnológica do universo virtual. Não só Bauman, mas Castells e Baudrillard falaram sobre os desdobramentos na sociedade dessa evolução e seus estudos sobre os temas surgiram após a década de 80. E o filme, no meu ponto de vista, é amargo por apresentar justamente essa visão, a das relações vazias. Também vejo isso como sendo algo extremamente aceitável, como você diz, mas para mim o filme é justamente amargo por isso, por demonstrar a nulidade das relações - não apenas as românticas, não havia dito isso, mas sim no âmbito geral das relações sociais. A forma de despedir as pessoas através de conferência, apresentada pelo filme, reforça isso através de uma metáfora clara e, para mim, bastante triste.

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