domingo, 3 de janeiro de 2010

Vincere

Direção: Marco Bellocchio
Roteiro: Marco Bellocchio e Daniela Ceselli
Elenco: Giovanna Mezzogiorno, Filippo Timi, Corrado Invernizzi, Fausto Russo Alesi, Michela Cescon, Pier Giorgio Bellocchio, Paolo Pierobon, Bruno Cariello

Regimes totalitários e ditaduras sempre deixaram feridas abertas. Estas feridas, que sangram vez ou outra, são importantes para que a memória não pereça com o tempo, para que os mesmos erros não se repitam, seja em nome de uma raça supostamente superior, tese na qual se apoiava o nazismo, ou mesmo de um regime nacionalista que prometia mundos e fundos à sua população, que o seguiu em nome da supremacia nacional, tal qual no fascismo italiano, que tinha em seu principal nome, o do então Primeiro-Ministro Benito Mussolini, chamado por todos de Il Duce. O cinema, ora por necessidade artística, ora por puro senso de oportunidade, historicamente sempre fez questão de ser um dos responsáveis pela não cicatrização das feridas destes sistemas opressores travestidos de governo. Vincere, do diretor italiano Marco Bellocchio, fala sobre a criação do partido fascista, a ascensão de Mussolini ao cargo que o tornou famoso, mas é mesmo um filme sobre a amante de Il Duce, Ida Dalser, aquela que ajudou a carreira de Mussolini, que lhe ofereceu amor incondicional quando ele era somente mais um militante em meio a uma Europa devastada pelo caos.

Bellocchio cria em Vincere uma ópera em dois atos, definição esta que li em alguma resenha, e da qual me aproprio, pois acredito que define muito bem esta pérola italiana. No primeiro deles, vemos o então militante Mussolini, sua amante Ida e todo movimento político/ideológico em torno de discussões socialistas, do cerceamento à imprensa e o embrião do que seria o Partido Fascista. O mérito de Bellochio, nesta primeira parte, é criar uma narrativa extremamente interessante, mesmo quando no centro estão os mais densos assuntos sobre a política italiana e sobre os movimentos do país durante a Primeira Guerra Mundial. Por meio da devoção de Ida a Benito e seus tórridos encontros, que sempre acabavam na cama, dá para sentir nele uma inclinação à liderança, já que mesmo na intimidade o militante parece nunca se desligar das dialéticas políticas, enquanto ela permaneceu devota ao seu amor, acompanhando as mudanças italianas, esperançosa que seu afeto fosse correspondido, regado e incentivado. Já no segundo ato, Bellochio nos mostra Mussolini através apenas de cines-jornais, revelando com isso uma sagacidade imprescindível para o desenrolar de Vincere. Il Duce já está no poder, é um ídolo nacional, e Ida passa por dificuldades. Não precisamos mais ver Mussolini, pois, assim como naquele tempo, sua presença era quase que tátil, em qualquer ambiente, ainda mais pela disseminação rápida e impiedosa dos princípios do fascismo. Este segundo ato da ópera deslumbrante de Marco Bellochio, que por vezes nos extasia, tanto pela construção narrativa como pela beleza plástica de algumas cenas, se aproxima mais do melodrama, sem perder seu cunho político e ideológico, numa mistura forte.

Curiosamente um dos personagens mais presentes em Vincere é o próprio cinema, bem como fez Quentin Tarantino em Bastardos Inglórios, seu pastiche delicioso contra (outra semelhança) o regime totalitário do nazismo. Na verdade, um pouco diferente de Tarantino, que escancara e faz do cinema personagem ativo e praticamente tangível de sua obra, Marco Bellochio o incorpora como elemento quase onipresente, mas de uma maneira tão naturalista que não se sente estardalhaço, como intencionalmente Tarantino faz. O cinema é ferramenta narrativa por meio dos cines-jornais, responsável por uma das cenas mais emblemáticas num hospital de campanha no qual se projeta A Paixão de Cristo para os doentes e veículo para uma das cenas emocionais mais impressionantes do filme, composta por Chaplin e uma mãe desesperada.

Ainda que não tenha estreado comercialmente no Brasil, Vincere foi uma das grandes coqueluches do Festival do Rio e da Mostra de São Paulo, no ano passado. Não é difícil corroborar com tantos elogios, quando se vê uma obra tão pulsante, que mistura uma narrativa absolutamente arrebatadora, um senso estético subserviente a mise-en-scène, não se prestando à fogo de artifício, e o discernimento histórico que não comunga do didatismo de algumas obras, que se mostram deveras preocupadas com a história, esquecendo-se do cinema, não sendo eficazes nem como documento, muito menos como narrativa. Vincere é um dos melhores filmes italianos que vi nos últimos anos, em parte, acredito eu, porque, por meio do amor e da obstinação de uma mulher que teve seu nome apagado da história oficial, faz questão de manter abertas as feridas do regime totalitário que tanto oprimiu a Itália e seu povo, sem ser enfadonho, panfletário, traçando ainda um paralelo inteligente com o presente. Alguém duvida que Berlusconi, o atual Primeiro-Ministro italiano, pode ser visto, mesmo que somente nas nossas mentes, e guardadas as devidas proporções, no lugar de Mussolini, fazendo aqueles discursos?



3 comentários:

  1. Olá, Celo!
    Belo texto, que além de bem escrito, carrega uma carga emocional evidente.
    Assim que tiver oportunidade, pretendo fazer as pazes com o cinema e conferir tal produção italiana, cinema que muito me agrada.

    Abraçosss

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  2. Que inveja(branca rs) de você. "Vincere" foi um dos filmes que eu tinha me programado pra assistir no Festival até pra comentar aqui, mas que infelizmente não consegui ír.
    Adoro os filmes do Marco Bellocchio, em especial "O processo do desejo", acho uma obra prima e "Diabo no corpo" também excelente!
    Vou correr atrás desse pra tentar assistir agora em dvd.
    Parabéns pelo texto.

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  3. Mais um filme que lhe peço! O pouco que li sobre "Vencer", agora também com seu texto, serviu para que ficasse extremamente interessado no filme... Espero poder assistir em breve!

    Abraços Celo.

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