segunda-feira, 17 de maio de 2010

Entrevista: Woody Allen










Woody Allen em Tudo Pode dar Certo, O Sentido da Vida (ou a falta dele) e a Atração pelas Mulheres Jovens
Scott Foundas, 18 de junho de 200 (Village Voice)
Tradução: Conrado Heoli

O novo filme de Woody Allen, “Tudo Pode dar Certo” – seu 40º para aqueles que continuam contando – marca um retorno para o cineasta em mais de um sentido. Para começar, é seu primeiro filme a ser filmado em Nova York desde Melinda e Melinda, de 2004, interrompendo meia década de férias européias das quais o septuagenário Allen dirigiu três filmes em Londres e um na Espanha. Ele também marca a realização de um projeto concebido inicialmente em 1970 como veículo para Zero Mostel, posteriormente deixado de lado após a morte precoce do ator. O resultado é uma comédia burlesca leve – um trabalho menor, mas emitentemente prazeroso de Allen – estrelado pelo gênio de “Seinfeld” e “Curb Your Enthusiasm” Larry David como Boris Yellnikoff, um professor de física ateu, egocêntrico e misantropo que tem seu desprezo pela raça humana diminuído quando conhece uma bela e avoada sulista (Evan Rachel Wood), que ele encontra quando está engatinhando em baixo das escadas do fundo de seu apartamento.

Allen está atrasado numa tarde de verão de maio, quando eu apareço em sua sala de edição no Upper East Side [em Nova York], escondida modestamente atrás de uma porta nomeada como “Manhattan Film Center” no subsolo de um prédio residencial. É aqui que Allen monta todos os seus filmes, os exibe (e exibe outros) em uma sala verde de veludo à prova de som, audiciona atores para seus próximos projetos (e sempre há um próximo projeto), e de vez em quando recebe alguém. Nas duas outras ocasiões em que eu vim até aqui para entrevistá-lo os resultados nunca foram menos que surpreendentes, com Allen dialogando com sinceridade e leveza sobre seus filmes e sobre a matéria cósmica que pesa sobre sua alma. E hoje não é exceção, enquanto Allen aparece em sua habitual blusa de botões em tom pastel, sua calça caqui e um sapato bem usado, pede desculpas por seu atraso, e começa a falar lentamente sobre o sentido da vida (ou a falta dele), o problema com atores e a atração pelas mulheres jovens.

Village Voice: O título “O Que Quer que Funcione” [tradução literal de Whatever Works, lançado no Brasil como “Tudo Pode dar Certo”] sugestiona uma filosofia de vida, mas também uma ética de trabalho. Em outras palavras, se você fizer um filme por ano, como você faz, você não pode se permitir sentar e esperar pela chegada das musas.

Woody Allen: Eu nunca fui alguém que esperou pelas musas, pois meu pano de fundo é a televisão. Quando eu comecei, nós costumávamos escrever shows, e se você estiver escrevendo para Gary Moore ou Sid Caesar – independente de quem for – você tinha que ter um show. Era ao vivo. Quando você chegava em uma segunda de manhã, você tinha que pensar em algo. Você não podia esperar por inspiração, você apenas tinha que fazer. Então eu me acostumei com isso, e posso continuar fazendo isso até hoje. Eu posso entrar em um quarto e, ainda que não surja sempre algo bom, eu posso produzir algo. Eu penso sim que é uma ética. Ela mantém você longe do prejuízo. Se você trabalha, isso mantém você distraído. Isso faz com que você não pense em si mesmo muito, sobre quão terrível você é, sobre quão bom você é. Isso é certamente depressivo.

Eu tenho utilizado muito esta comparação: com deficientes mentais em uma instituição, eles dão para eles serviços de tecelagem, pinturas com o dedo e coisas assim para se fazer, porque o ato de trabalhar com suas mãos é sadio e terapêutico. É a mesma coisa com o ato de se fazer um filme, que é um produto artesanal. Você tem que escrevê-lo, você deve sair e filmá-lo, então nós viemos até aqui e montamos o filme e inserimos música nele. Por um período de tempo, você tem duas recompensas: você tem a recompensa da distração – você não pensa sobre o mundo externo, e você está direcionado para problemas solucionáveis, e se eles não são solucionáveis, você não morre por conta deles. E então, se é o filme correto, você poderá viver em uma falsa realidade por alguns meses. Então se eu estou fazendo um filme como “A Rosa Púrpura do Cairo” ou “Tiros na Broadway” ou “Todos Dizem Eu Te Amo”, por vários meses eu passo a viver com mulheres lindas e homens brilhantes e eles têm trajes, e os sets são bonitos. É uma forma muito agradável de desperdiçar sua vida.

VV: É engraçado que você menciona esses filmes em particular pois, como eles, “Tudo Pode Dar Certo” parece uma fantasia. Os personagens e a história possuem sentimentos pesados e exagerados.

Allen: Certo, é um conto caricato. A mãe, o pai – todo mundo nesse filme é caricato.

VV: Eu também me lembrei de dois de seus filmes mais recentes, “Match Point” e “O Sonho de Cassandra”, ambos que também relacionam sorte, chances e a aleatoriedade da vida, além de “Tudo Pode Dar Certo” ser um roteiro que você escreveu há mais de 30 anos. Quando nós conversamos na época de lançamento de “Match Point”, você disse, “Você está sempre procurando por controle e, no final, você está em baixo de um piano suspenso implorando para que ele não caia na sua cabeça.”. E aqui há uma cena em que uma pessoa cai de uma janela na cabeça de outra pessoa!

Allen: A mesma obsessão que eu tive quando eu comecei, eu tenho agora. Eu estive em análises, eu fui bem sucedido, eu tive altos e baixos. Eu tive alguns filmes de sucesso, filmes que falharam. Mas com tudo que aconteceu comigo, todas as minhas experiências, eu nunca fui hábil para resolver o real problema da vida que atormenta qualquer escritor desde Eurípides e Aristófanes. Nenhum progresso foi feito nos temas existenciais e na subjetividade das relações pessoais, que ainda são brutas, dolorosas, frágeis e muito difíceis de fazer funcionar, e que causam em todos um gigante sofrimento e pesar. Porque estamos aqui? Qual é o sentido de tudo isso?

Considere a questão de Camus [em “A Pertinácia de Sísifo”] de se cometer ou não suicídio. Agora, mesmo as pessoas mais amargas racionalizam que, no caso de Camus, ele sente como se estivesse empurrando uma pedra morro acima, qual o sentido disso, sua validade e que você não tem que ser bem sucedido. Mas eu sinto – respondendo a questão do porque nós não nos matamos desistindo de uma vida sem sentido, sem a existência de um deus – que é uma questão pré-intelectual, e que seu corpo responde para você. Sua mente nunca será capaz de dar a você uma justificativa convincente para viver sua vida, pois por um ponto de vista lógico, se sua vida é realmente sem significado – o que é – e não há nada lá fora, qual é o sentido disso? Bem, o sentido é simplesmente que você fica com muito medo de terminá-la porque você é duro, está em seu sangue viver e querer viver e querer proteger a si mesmo. Então, enquanto eu estou em casa tagarelando sobre como a vida é sem sentido e cruel, brutal e sem qualquer propósito, se há um incêndio em minha casa, eu tomo medidas extremas para salvar minha vida. E então quando eu tiver salvado minha vida, eu direi a mim mesmo: “Porque você se preocupou em fazer isso?”.

VV: Mesmo com os moldes de personagens antissociais e desagradáveis que você escreveu no passado, incluindo os que você mesmo interpretou em “Igual a Tudo na Vida” e “Desconstruindo Harry”, Boris parece estar um passo à frente.

Allen: Você sabe, em um ponto eu estava pronto para chamar esse filme, quando eu escrevi ele inicialmente, como “Zero, O Pior Homem no Mundo”. Eu pensei que seria um personagem engraçado – um cara que é a quintessência da misantropia e que não pode se encaixar, não quer se encaixar, rejeita tudo, não é apenas alguém que pode lidar com a vida ou que quer lidar com ela. Ele não a aceita: ele acredita que o fato de ser mortal é inaceitável. Ele não pode concordar com as regras da vida. Os personagens que eu interpretei em outros filmes estavam certamente na mesma direção, mas não tão extremamente como eu quis criar o personagem de Boris.

VV: Você, em algum ponto das três décadas passadas, considerou interpretar o personagem?

Allen: Não, pois quando eu pensei em Zero eu pensei nele como um papel para um homem gordo. Eu pensei nele como um físico gordo e agressivo, um russo genial do xadrez que não tem tempo para “micróbios” e “minhocas”. E eu não pude fazer isso. Minha fonte de comédia é mais vítima – eu me encontro assustado quando eu ouço um barulho no outro quarto, esse tipo de coisa. Esse cara era grandioso. Eu estava com dificuldades de encontrar pessoas que poderiam interpretá-lo agora, e então a Juliet Taylor [diretora de elenco] mencionou Larry, com quem eu havia trabalhado de forma breve anteriormente e que conhecia de “Curb Your Enthusiasm”. Mas pareceu para mim que ele não poderia interpretá-lo, porque no seu programa televisivo ele é muito autêntico. Ele não é exagerado ou possui uma postura falsa. É claro, ele me disse várias vezes que não poderia fazê-lo, que ele não era ator, isso e aquilo, então eu soube que ele seria ótimo. Por que ele é do tipo da Diane Keaton, que diz o quão ruim é e que sempre chega lá. São aqueles que dizem a você que são maravilhosos que nunca chegam lá.

Pessoas que podem atuar são naturais. Ao longo dos anos, eu conheci e trabalhei com pessoas que estudaram por todos os lugares, e se eles tivessem talento natural seria ótimo. Se eles não tivessem, o fato deles terem estudado não significa nada. Eu tirei caras das ruas – literalmente das ruas – que vieram trabalhar e, quando eles falavam, eles eram inconscientemente autênticos. Entretanto, com um monte de atores profissionais, eles chegam até mim por um papel e nós conversamos como estamos fazendo agora, e eles são bons. Então, eles estudam o papel e entram no seu modo de atuação, e tudo sobre eles repentinamente deixa de ser autêntico. Eles acreditam que precisam fazer algo para o material ou eles não estão justificando seus pagamentos. Então eles começam a atuar, e você não quer que eles atuem; você apenas quer que eles falem. Se eles supostamente devem ser um vendedor, você quer que eles sejam um vendedor como você reconhece um vendedor. Mas eles não são. Eles passam a imitar um vendedor.

VV: A verdadeira revelação no filme, eu acredito, é Evan Rachel Wood, que teve papeis fortes em um inúmeros filmes mas que não teve uma oportunidade de interpretar essa espécie ingênua e maluca dos anos 30.

Allen: Eu nunca havia ouvido falar nela, e minha esposa disse “você deveria procurar essa garota Evan Rachel Wood, pois eu a vi em um ou dois filmes e ela é apenas incrível!”. Então alguns dias depois, Santo Loquasto [diretor de arte] estava falando comigo e disse exatamente a mesma coisa. Então eu a analisei e percebi que ela era uma atriz memorável – complicada e sombria, realmente excepcional. Eu não sabia se ela poderia fazer comédia ou não. E então ela fez e foi incrivelmente boa. Eu disse a ela, “É uma garota sulista, você deverá fazer um sotaque sulista”, e ela não faria para mim, não me mostraria até filmarmos. Agora, eu me identifico com isso. É arriscado, pois se ela não pudesse fazer eu estaria em sérios problemas. Mas ela fez, e fez incrivelmente.

Por outro lado, Ed Begley Jr. [que interpreta o pai de Wood] não tinha ideia que ele seria solicitado a fazer um sotaque sulista. Ele veio à Nova York, pegou seu figurino, veio ao set. A primeira tomada que filmamos no filme era com ele, e ele não tinha ideia. Eu disse “Você sabe que irá interpretar com sotaque sulista. Você faz um sotaque sulista, certo?”. Ele disse “Bem, eu acho que posso.”. Eu disse “Ok, pois eu acredito que você soubesse isso quando leu [o roteiro].”. Mas ele não sabia, e ele simplesmente fez. Tanto para todo esse meticuloso preparo.

VV: Tanto para O Método.

Allen: Eu estava com uma japonesa ontem, que estava na cidade fazendo entrevistas pois “Vicky Cristina Barcelona” está estreando no Japão. Ela me perguntou de quais filmes recentes eu gostei e eu mencionei “O Casamento de Rachel”, que é um filme do qual eu gostei muito. Ela disse que havia entrevistado Jonathan Demme e que ele disse que era a primeira vez que ele filmava sem ensaio, e claro que todo mundo no filme estava incrível e é um filme incrível. Eu, por outro lado, nunca fiz ensaios. Eu apenas acho que eles não são necessários. E então, há diretores – grandes diretores, como Ingmar Bergman – que ensaiavam e ensaiavam. Eu não saberia o que fazer em um ensaio. Quando eu estava em “Cenas em um Shopping” de Paul Mazursky, ele fez ensaios extensos, e ele era um cara maravilhoso e um diretor maravilhoso, mas eu pensava que aquilo era um saco na época. Eu pensava “Como você tem paciência para isso?”, mas é a forma como ele trabalha. Eu apenas nunca pensei por um minuto nisso antes, até o ponto em que um ator chega ao set sem saber que ele deve fazer um sotaque sulista. E sim, eu poderia ficar muito traumatizado se ele dissesse “Oh, eu não sei fazer um sotaque sulista, Eu apenas posso fazer um. Se você precisar do britânico, ótimo, mas eu não posso fazer o sulista.”. Então eu tive sorte por esse lado, de não ter entrado em uma catástrofe. É a mesma coisa com uma cena que tenha muita ação física. Eu trabalho com o câmera e trago o ator sem ensaio e digo “Comece aqui e vá até lá e pegue um cigarro e então venha para cá”, e 99% do tempo isso é exatamente o que ele faz e fica bom. Em algum momento alguém dirá “Eu não sei o que estou fazendo aqui. Eu me sentiria melhor caminhando para a janela.”. E eu sempre direi “Então caminhe para a janela.”.

VV: O filme sugere que Boris se redime, fica humanizado de certa forma, por seu encontro com esta garota bem mais nova, e você próprio disse que encontrou felicidade com sua esposa, Soon-Yi, e que você nunca imaginara que encontraria isso com uma coreana mais jovem que não tinha relação alguma com a indústria cinematográfica.

Allen: Na ficção, isso era um tema ainda em “Manhattan”, isso com essa pessoa jovem presumivelmente mais inocente – antes que eles fossem estragados pelo mundo – esse alguém pode encontrar certa felicidade. Eu tinha muita boa sorte, pessoalmente, nesse sentido, mas esta sempre foi uma ideia minha voltada ao passado. Mesmo a Annie Hall [de “Noivo Neurótico, Noiva Nervosa”], se você pensa dessa forma, era uma espécie de garota ingênua de Chippewa Falls, que era jovem e viera para Nova York e não sabia nada e era uma completa caipira, rude, com todas as expressões coloquiais mas com o pensamento de que ela se tornaria uma mulher madura. Naquele tempo, ela representava para mim o mesmo tipo de vigor.

VV: Quando falamos no ano passado, você estava prestes a vir para Los Angeles para dirigir sua primeira opera, “Gianni Schicchi”, de Puccini, e você brincou dizendo que fugiria da cidade rapidamente antes que alguém tivesse a chance de te acusar e rir de você por causa disso.

Allen: Eu saí no final para que fosse uma experiência agradável, pois eu estava cercado por pessoas talentosas. O elenco era maravilhoso, eu não os escolhi, eles me deram o elenco. O condutor era ótimo. Era simplesmente um prazer. E, obviamente, eu estava trabalhando com um material que era incrível. Era a primeira vez que eu dirigia algo que não era meu, então eu poderia me devotar diretamente com a direção. Eu não tive que escrever e constantemente corrigir problemas de escrita. Isso é o que eu faço todo o tempo em meus próprios filmes. Eles estavam sempre em um roteiro original, e eles estavam cheio de erros. Não é como um show da Broadway, onde eu monto fora da cidade. Com um filme é assim, então eu estou reescrevendo constantemente e corrigindo, ajudando e ajustando. Aqui, Puccini tem uma pequena obra-prima em termos de música e história, então tudo o que eu tinha de fazer era montá-la. Agora, é uma ópera curta, e eu não penso que poderia fazer Aida com os elefantes.

VV: Há algo que você possa dizer sobre o filme que você está preparando para filmar no próximo verão, outro que se passa em Londres novamente e é protagonizado por Naomi Watts?

Allen: Você sabe o elenco completo, certo? Anthony Hopkins, Feida Pinto, Josh Brolin, Antonio Banderas. O elenco é incrível. É uma comédia dramática, eu posso te dizer isso. É um filme cômico, mas no modo de “Vicky Cristina Barcelona” ou “Hannah e Suas Irmãs”. Não é cômico como Bananas. Dessa vez é real, com um lado sério, mas espero que tenha uma grande soma de gargalhadas. Espero que tenha.


A entrevista acima é uma tradução integral da conversa publicada entre Foundas e Allen, e o conteúdo original você encontra
aqui.

2 comentários:

  1. Woody Allen. Muitos o acusam de se repetir, de reesquentar velhas fórmulas criadas por ele mesmo no passado. Eu sou fã, tanto de seus filmes, como da originalidade e sinceridade de suas entrevistas. Allen parece o artista com vocação, alguém que não intelectualiza muito sua arte e, mesmo não admitindo, faz dela veículo de sua genialidade.

    Esta entrevista é ótima, muito interessante mesmo.
    Kon, parabéns pela ótima tradução.

    abraços

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  2. Oi, Kon!
    Muito obrigado por nos presentear com mais uma bela entrevista, desta vez com o encantador e supreendente Allen.

    Abraçossss

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