segunda-feira, 12 de julho de 2010

O Humano Grotesco de Pasolini


O ser humano é um bicho complexo, quisá o mais complexo de todos. É certo que não seria justa qualquer comparação com nossos irmãos do reino animal, pois, se contarmos apenas o fato de termos consciência, esta complexidade inerente a todo ser humano já se justifica. A arte sempre se propôs a investigar com profundidade os meandros do comportamento humano, tão difícil de descrever e entender quanto a própria natureza humana. É certo que temos códigos em comum, como a moral e a ética, que são uma espécie de legislação não escrita, uma série de comportamentos que se fazem necessários, ainda mais se contextualizarmos o humano como animal social, que divide espaço com outros de sua espécie. Nossa intimidade é cada vez menor, nosso espaço particular reduzido em prol da construção de algo maior, que é esta teia chamada sociedade. Os grandes filmes são aqueles que tentam dar conta desta multiplicidade de comportamentos, que não deixam com que sejamos facilmente classificáveis, inteiramente justificáveis e muito menos totalmente compreensíveis.

Pier Paolo Pasolini, cineasta italiano controverso, parece querer com Saló ou os 120 dias de Sodoma expandir a individualidade, nem que para isso precise deixar aflorar perversões e experiências masoquistas nesta busca de libertação. Libertação esta que vem, é bom dizer, não somente aos que torturam. Sob um olhar mais superficial, pode parecer uma ode a violência, ao lado mais perverso que habita a alma humana, afinal de contas não é sempre que vemos sodomizações, pessoas se alimentando de fezes, outros sendo obrigados a ingerir alimentos cheios de pregos ou mesmo forçados a urinar em seus algozes para que estes alcancem o êxtase. O prazer, aliás, é o conduto pelo qual os personagens parecem chegar a uma espécie primitiva de virtude libertária. 

Por mais que Saló ou os 120 dias de Sodoma seja um filme muito mais para ser sentido do que racionalizado, há de se entender que Pasolini, fiel a seus ideais e às batalhas que travava diariamente contra o preconceito e o sistema, ataca os poderes instituídos como responsáveis por disseminar ainda mais os conceitos que fazem da sociedade esta coisa predominantemente vazia. Os torturadores principais são representantes destes poderes que criam as regras, e sua presença nada mais é do que a tentativa de Pasolini de mostrar o que eles fazem conosco, utilizando para isto a metáfora extrema que carrega o filme. 

Creio que muitos não chegariam nem a metade caso se propusessem assistir Saló ou os 120 dias de Sodoma, não tanto por conta da violência gráfica, da imagem que oprime quem assiste, ora causando náuseas, ora despertando incomodamente uma pulsão sexual primitiva, mas pelo clima, pela maneira violenta como a forma entra em simbiose com a fábula. Aberração, quimera cinematográfica, Saló ou os 120 dias de Sodoma é um filme de extremidades que, paradoxalmente, evoca o poder da palavra, sobrepondo ele ao da imagem, já que mesmo com mulheres e homens nus a sua disposição, as pessoas só se excitam de verdade ao ouvirem relatos, imaginando situações para depois pô-las em prática. Em todo filme é sintomático este relevo da palavra.

Complexo e libertário, bem ao estilo de Pasolini, este ainda é um filme forte no alcance de suas intenções ao nos mostrar que o humano é bem mais do que amor e necessidades básicas. Ele, o humano, é tão multifacetado que nem mesmo o mais competente estudo, ou mesmo a mais brilhante obra de arte, pode chegar à utopia da definição. Cada coisa é uma partícula da tentativa, numa busca eterna. Não por acaso, e dada sua complexidade, Saló ou os 120 dias de Sodoma possui até uma bibliografia essencial como parte de seus créditos iniciais, coisa que nunca tinha visto em minhas experiências com o cinema.

3 comentários:

  1. Pasolini! Ame-o ou deixe-o, é o que muitos dizem. Sou facinado por "Teorema" e seu "Medéia" não me agradou. Talvez com "Saló ou os 120 dias de Sodoma" minha balança para a filmografia do diretor se equilibre - acredito que com vantagem para o lado positivo.

    Abraços Celo!

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  2. Lembro perfeitamente no dia em que depois de muito caçar esse filme(pq nao tinha chegado em área 4 e nem ia chegar), assisti com um milhão de expectativas!
    E posso dizer que poucos filmes me chocaram como "Saló".
    É um filme que angustia, que convoca o mal estar, mas que por outro lado é uma obra de arte! Como vc bem falou Marcelo, poucos ou talvez nenhum teria coragem de ousar como Pasolini.
    Mais do que libertário, enxergo-o como um artista muito autêntico e concordo totalmente com vc Conrado, qdo diz que ama-se ou odeia-se esse diretor.Algo como pegar ou largar! Já vi muita gente desistindo de ver seus filmes no meio e não só "Saló"!!
    Pra mim ele tem o mérito de apresentar um cenário perfeito em todos os seus trabalhos e passando por realidades bem distintas.Isso não é fácil.
    Ele consegue ser transgressor, ousado e até agressivo em "Saló" mas ao mesmo tempo nos apresenta uma poesia, um lirismo incrível em "Medéia" por exemplo.
    Gosto muito do Pasolini.
    Bacana seu texto sobre "Saló" . Bom gosto ;)

    Carol

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  3. Celo!
    Tenho um forte receio de "Saló", o qual talvez é oriundo de um mesmo receio de Pasolini. Mas, segundo pude perceber através da dissertação acima, o filme estabelece uma experiência única e arrebatadora.

    Abraçossss

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