Dizer que o cinema documental é a
crônica da verdade só demonstra inocência. Basta a câmera ligada, ou qualquer
outra forma de registro, para criarmos automaticamente espécie de “corpo
cênico”, diferente em alguma medida do nosso cotidiano, o que por si limita a possível
captura do real, digamos, cru. Por isso mesmo, os tais limites cada vez mais
quebradiços entre ficção e documentário podem ser relativizados sempre, ainda
que não negligenciados. Claro, de uns tempos para cá as linguagens vêm se
imbricando de maneira explícita, por isso a discussão acerca do hibridismo
norteador de determinadas propostas.
Alguns filmes absorvem com mais
naturalidade essa fronteira borrada, valendo-se dela como energia vital. Morro do Céu, dirigido por Gustavo
Spolidoro (do ótimo Ainda Orangotangos)
é um desses exemplares que buscam força na confusão entre encenação e
realidade. O cineasta fez-se equipe (é diretor, operador de câmera e
responsável pelo som direto) e foi até a pequena comunidade homônima do longa,
incrustada no município de Cotiporã, interior do Rio Grande do Sul, para
acompanhar a rotina de Bruno, um adolescente como outros às voltas com
dificuldades escolares, o amor e tantos dilemas inerentes ao período pré-idade
adulta.
Impressiona o naturalismo e a
espontaneidade que Spolidoro consegue capturar. A câmera torna-se invisível,
parte indissociável de uma paisagem interiorana movida por sistemas analógicos
em plena era digital. Nada de muito espetacular acontece em Morro do Céu, a não ser o fluxo
ininterrupto de dias preenchidos por assuntos surgidos para logo morrer e
paixões efêmeras. Curioso, o interior
gaúcho foi cenário recente de histórias com enfoques próximos sobre a
adolescência, justamente em localidades onde o tempo lento contrapõe-se à atualidade
teimosa em progredir quase à velocidade da luz. Nesse sentido, irmanam-se ao
filme de Spolidoro: Antes que o Mundo
Acabe e Os Famosos e os Duendes da
Morte.
Gustavo Spolidoro não se limita a
criar documentalmente um trajeto inserindo nele elementos de pura ficção. Morro do Céu parece a vida impressa na
tela, ainda que (não sejamos ingênuos) o diretor tenha pleno controle daquilo frente
aos olhos. Digo “não se limita”, pois despido de vaidade, Spolidoro evita projetar-se
nos personagens e nem ao menos faz questão de sua autoria revelada por algo que
denuncie interferência diretiva. Ele quase some, deixando Bruno, o colega Joel,
os humildes pais, a borboletinha objeto de desejo, as incertezas e tudo mais,
virem à tona numa suposta banalidade que engenhosamente deflagra a existência para
além da câmera de cinema.
Publicado originalmente no Papo de Cinema
Olá, Celito!
ResponderExcluirAdoro esse filme, tanto que motivou visita minha ao pequeno município de Cotiporã: cidade descolada de nosso tempo, ditada pela calmaria e não pelo implacável relógio.
Grande abraço.