segunda-feira, 24 de junho de 2013

Morro do Céu


Dizer que o cinema documental é a crônica da verdade só demonstra inocência. Basta a câmera ligada, ou qualquer outra forma de registro, para criarmos automaticamente espécie de “corpo cênico”, diferente em alguma medida do nosso cotidiano, o que por si limita a possível captura do real, digamos, cru. Por isso mesmo, os tais limites cada vez mais quebradiços entre ficção e documentário podem ser relativizados sempre, ainda que não negligenciados. Claro, de uns tempos para cá as linguagens vêm se imbricando de maneira explícita, por isso a discussão acerca do hibridismo norteador de determinadas propostas.

Alguns filmes absorvem com mais naturalidade essa fronteira borrada, valendo-se dela como energia vital. Morro do Céu, dirigido por Gustavo Spolidoro (do ótimo Ainda Orangotangos) é um desses exemplares que buscam força na confusão entre encenação e realidade. O cineasta fez-se equipe (é diretor, operador de câmera e responsável pelo som direto) e foi até a pequena comunidade homônima do longa, incrustada no município de Cotiporã, interior do Rio Grande do Sul, para acompanhar a rotina de Bruno, um adolescente como outros às voltas com dificuldades escolares, o amor e tantos dilemas inerentes ao período pré-idade adulta.

Impressiona o naturalismo e a espontaneidade que Spolidoro consegue capturar. A câmera torna-se invisível, parte indissociável de uma paisagem interiorana movida por sistemas analógicos em plena era digital. Nada de muito espetacular acontece em Morro do Céu, a não ser o fluxo ininterrupto de dias preenchidos por assuntos surgidos para logo morrer e paixões efêmeras.  Curioso, o interior gaúcho foi cenário recente de histórias com enfoques próximos sobre a adolescência, justamente em localidades onde o tempo lento contrapõe-se à atualidade teimosa em progredir quase à velocidade da luz. Nesse sentido, irmanam-se ao filme de Spolidoro: Antes que o Mundo Acabe e Os Famosos e os Duendes da Morte.

Gustavo Spolidoro não se limita a criar documentalmente um trajeto inserindo nele elementos de pura ficção. Morro do Céu parece a vida impressa na tela, ainda que (não sejamos ingênuos) o diretor tenha pleno controle daquilo frente aos olhos. Digo “não se limita”, pois despido de vaidade, Spolidoro evita projetar-se nos personagens e nem ao menos faz questão de sua autoria revelada por algo que denuncie interferência diretiva. Ele quase some, deixando Bruno, o colega Joel, os humildes pais, a borboletinha objeto de desejo, as incertezas e tudo mais, virem à tona numa suposta banalidade que engenhosamente deflagra a existência para além da câmera de cinema.


Publicado originalmente no Papo de Cinema

Um comentário:

  1. Olá, Celito!
    Adoro esse filme, tanto que motivou visita minha ao pequeno município de Cotiporã: cidade descolada de nosso tempo, ditada pela calmaria e não pelo implacável relógio.

    Grande abraço.

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