Os que têm o coração selvagem
lutam por seus sonhos e, sobretudo, não fogem do amor. Ensinamentos da “Bruxa Boa”,
entidade alcançada por Sailor só no ocaso, após ele superar obstáculos (não
poucos) para poder, finalmente, declarar sua afeição incondicional por Lula. Coração Selvagem é o filme
desbragadamente romântico de David Lynch, aquele no qual ele trafega com mais
sinuosidade entre o bom e o mau gosto para, justamente, e de maneira genial,
fazer emergir o caráter até um tanto ingênuo e pueril inerente aos amores
idealizados e residentes em nosso imaginário. Não à toa, Sailor e Lula parecem
saídos diretamente da década de 50, época romanesca dos casais que descobrem
primeiro a sincronia afetiva para depois alinhar-se sexualmente, por exemplo.
Mas estamos em terreno lynchiano, ou seja, mesmo os mais
arraigados nas características alusivas aos valores de outrora se comportarão
conforme os códigos do nosso contemporâneo mundo doente. Sailor mata um homem
com as próprias mãos, como que para defender a si e a sua amada das garras da “Bruxa
Má”, melhor dizendo, da sogra maculada por ligações ilícitas do passado e do
presente. Lula espera seu homem sair da cadeia e, com ele, empreende viagem de
automóvel na qual não se preocupará com mais nada além de amá-lo, afetiva e
sexualmente falando.
Coração Selvagem, então, assume-se road movie, cai na estrada com a dupla perseguida por assassinos e
outros vilões. Se comparados ao entorno, repleto de gente estranha como Bobby
Peru, Sailor e Lula são o mais próximo da pureza que ainda sobrevive em meio à
podridão. Lynch utiliza alusões ao Mágico
de Oz, o fogo enquanto catalisador, entre outros símbolos, para ressaltar o
trajeto turbulento que o casal precisará percorrer para, enfim, chegar ao
caminho dos tijolos amarelos e fazer triunfar seu amor.
Mistérios e Paixões se ancora da década de 1950 para mostrar Bill
Lee, aspirante a escritor que, diante da impossibilidade de concretizar seu
sonho artístico, extermina insetos para pagar as contas. Ele passa por
dificuldades: o estoque de inseticida acaba rápido, pois sua esposa o consome
em busca de “baratos”. Levado, então, pela parceira, ele experimenta o pó e entra
em viagens tão alucinógenas quanto existencialistas, nas quais, por exemplo, as
máquinas de escrever, ou seja, objetos inorgânicos, adquirem vida e passam ao
estado orgânico.
Naked Lunch, de William Burroughs, é obra quase impossível de ser vertida
ao cinema, isso levando em consideração qualquer fidelidade ao espírito
matricial beatnik. Será a autoria
delirante de David Cronenberg suficiente para dar conta do recado? O cineasta
realmente transpôs a essência do livro através de seu próprio estilo narrativo,
desenvolvendo a trama próximo do neo-noir policial, com direito a
insetos-criaturas (alusivos a A Mosca),
entre outras bizarrices. A calamitosa tradução brasileira, responsável por
transformar Naked Lunch (Almoço Nu) em Mistérios e Paixões, não nos permite vislumbrar nada relacionado ao
enredo, pois inexistem “mistérios” e “paixões” avalizando tal destaque.
Tanto em Coração Selvagem quanto em Mistérios
e Paixões, vícios e obsessões estão presentes como imprescindíveis no
desenho dos personagens e, por conseguinte, nos traços narrativos. No filme de
Lynch, Lula nutre paixão por O Mágico de
Oz e Sailor, por sua vez, espelha-se em Elvis Presley. Além disso, ambos
têm algo de ninfomania, principalmente ela.
Já no filme de Cronenberg, o casal principal vira dependente do inseticida,
substância que fornece paranoias delirantes. Além disso, Bill é obcecado por
literatura e pela escrita, ao ponto de podemos classificar tais “paixões” como
patológicas, dado seus traços compulsivos.
Provável que Coração Selvagem seja um dos filmes mais acessíveis de David Lynch,
não por instaurar-se no terreno do banal, longe disso, mas por abrir-se às
interpretações, já que desprovido de signos indecifráveis ou deveras ambíguos,
exceção talvez feita à figura de Bobby Peru. Já Mistérios e Paixões, quem sabe por advir da literatura e carregar
consigo a inerente dificuldade da adaptação de uma linguagem à outra, é confuso
na sua ressignificação, justo porque Cronenberg narra a história de Burroughs
utilizando a via do suspense policial. Ao
passo em que conserva a importância metafórica do inconsciente (evidenciada no
ato de escrever), guia-se ora por meio do inseto imaginário, ora pelo homem
aturdido, gerando, assim, estranhamento para além da conta.
Por Ana Carolina Grether e Marcelo Müller
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CORAÇÃO SELVAGEM – Por Lívia Lima
Coração Selvagem seria tão somente uma história de amor e erotismo se não fosse um filme de David Lynch. Apesar de ser um dos filmes mais "acessíveis" do diretor, um olhar mais atento, nos mostra que sua costumeira e genial bizarrice e sensibilidade estão ali presentes.
Sailor e Lula formam um casal que parte numa viagem de carro fugindo da mãe desequilibrada dela que havia ordenado o assassinato dele. Ele, um sujeito que transita entre o heroísmo e a marginalidade, ela, uma mulher tão sexy e latente quanto infantil. No caminho, encontram os mais variados tipos estranhos, como o assaltante Bobby Peru (que tem a melhor cena do filme, na minha opinião, quando ele aterroriza e, ao mesmo tempo, seduz Lula) e as gêmeas loiras.O filme é cheio de referências pop: Sailor parece uma versão pós-moderna de Elvis Presley. Lula é uma espécie de Marilyn Monroe misturada a Dorothy de O Mágico de Oz. O clássico é citado diversas vezes, seja nos sapatos vermelhos de Marietta, a mãe de Lula, ou por a mesma vê-la como uma espécie de “Bruxa Má do Oeste” ou mesmo a estrada que serve de caminho para chegar além do arco-íris que a protagonista deseja.Coração Selvagem é a exaltação de Lynch ao amor sentido na pele e vivido intensamente. Assim como o fogo, que permeia todo o filme, somos consumidos por Sailor e Lula e terminamos o filme amando-os com ternura.
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MISTÉRIOS E PAIXÕES – Por Leonardo Ribeiro
Difícil imaginar nome melhor para adaptar Almoço Nu, de William S. Burroughs, do que o de David Cronenberg. Com sua obsessão pelas transformações carnais e psicológicas do ser humano, Cronenberg costura trechos do livro com fatos da vida do autor, em uma trama de mistério, mas o que realmente interessa ao diretor é a paixão do personagem Bill Lee por escrever. Mais do que uma paixão, um vício. E Cronenberg mergulha de cabeça nesse vício, misturado ao consumo do “pó inseticida”. A substância alucinógena possibilita a criação das imagens bizarras características do diretor, mas é a relação íntima de Lee com seu ofício que se torna o ponto central. Não à toa, a máquina de escrever, que em seus delírios se transforma em um inseto gigante, sente prazer com o toque do escritor em suas teclas. É a conexão entre o prazer físico e intelectual que Cronenberg tanto preza, e que reflete o seu próprio prazer pela arte cinematográfica.Assim, mesmo sendo uma adaptação, o filme resulta em algo totalmente pessoal. Diferente de outras adaptações literárias do diretor, como Crash, Mistérios e Paixões não é tão bem calculado. Sua trama é confusa e as partes funcionam melhor isoladamente do que em conjunto. Mas é exatamente por seu desejo de arriscar, de se apoderar de uma obra para criar algo particular, sem medo de errar pelo caminho, que Mistérios e Paixões se torna um capítulo fundamental na filmografia de Cronenberg.
Mais uma vez constato o quanto é interessante juntar diversos olhares sobre uma perspectiva.
ResponderExcluirOs textos apaixonados que tem surgido no Cinema a dois são a maior prova de que cada olhar acrescenta um ponto novo, um aspecto não percebido até então ou até visto mas não percebido da mesma forma.
p.s..>> Leonardo, só você pra otimizar(com argumentos) Mistérios e paixões do Cronenberg hehe.
bjs
Livia escreve divinamente e Leo já é profissional da área :)
ResponderExcluirOs textos produzidos para a série estão excelentes, me fazem reavaliar conceitos e desejar conhecer melhor os trabalhos dos Davids!
Concordo totalmente com você, Carol. A possibilidade de juntar opiniões sobre os filmes nos permite evidenciar mesmo uma multiplicidade de olhares e interpretações que enriquece nossas futuras sessões.
ResponderExcluirE, Mana, legal que os textos despertem em você essa vontade de conhecer mais a fundo o trabalho dos Davids. Para mim está excelente ajudar a produzir esse especial, justo pelos mesmos motivos, pois me faz reavaliar tanto o trabalho de Lynch quando o de Cronenberg.
Valeu
beijos
Mais um show!
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