domingo, 1 de dezembro de 2013

De Olhos Bem Fechados


De Olhos Bem Fechados (1999) é o testamento cinematográfico de Stanley Kubrick, ele que foi um dos mais importantes diretores da história. Recebido na época com desconfiança, sinal de declínio para muitos, todavia o longa é bastante afinado com as obsessões recursivas de seu criador, homem crente, por exemplo, na exaustão como caminho para algo próximo do perfeito. O protagonista, incialmente do conto Traumnovelle, de Arthur Schnitzler, no qual o filme foi baseado, é Bill (Tom Cruise), bem-sucedido médico nova-iorquino. Após festa onde tanto ele quanto a esposa, Alice (Nicole Kidman), flertam entre a inocência e o perigo com pretendentes aleatórios, fato a princípio sem maiores danos, Bill se vê confrontado pela quebra da confiança na mulher, onde alicerçava a segurança de sua vida.

Alice não traiu seu marido, não dormiu com alguém, apenas admitiu, sob o efeito da erva, ter idealizado relação com desconhecido marinheiro numa das viagens do casal. Ora, sabemos, a fantasia passa muitas vezes ao largo da vontade/necessidade de concretização, mas para Bill tal “confissão” surge como indicativo da força sexual da esposa, com a qual não parece lidar muito bem. Passa, então, a ser atormentado frente a ideia de Alice ser possuída por outro no terreno entre a lascívia e a imoralidade. Assim, abalado, ele sai para atender chamado profissional na madrugada (véspera de Natal) em que será cortejado pela filha do paciente recém-falecido, quase consumará sexo com prostituta e acabará, antes de voltar para casa, num ritual misterioso. Para Bill, só é permitido entrar nas vertentes de seu próprio desejo a partir do instante em que constata a suposta independência sexual de Alice. Se ela pode, ele não? Vendeta pura.

Como num pesadelo repleto de estágios, mais real e ordinário que nós mesmos podemos conceber num primeiro momento, Bill adentra na tal cerimônia orgiástica em meio a pessoas fantasiadas e mulheres submissas ao prazer alheio. A atmosfera onírica proposta por Kubrick é calcada na construção imagética e no expressivo aporte dramático da trilha sonora, elementos que nos transportam - assim como ao protagonista - quase à realidade paralela onde o desejo não vê barreiras e manifesta-se de maneira primitiva. Bill presencia cenas de sexo desobedientes dos códigos sociais vigorantes, homens e mulheres ocultos deliciando-se ao ver ou “consumir” vestais igualmente mascaradas. Algo mais libertador que dar vazão aos anseios recônditos sem qualquer culpa, pois na ignorância?

De Olhos Bem Fechados é digno do gênio responsável por outras obras inesquecíveis como 2001 – Uma Odisseia no Espaço, Laranja Mecânica, Nascido para Matar, Glória feita de Sangue, etc. Investindo fundo na psicologia de seus personagens, Kubrick subverte, também, o papel da celebridade ao escalar para seu derradeiro filme o casal queridinho da época, trazendo suas figuras (diegéticas ou não) para o espectro comum. Assim sendo, não são nada aleatórias as cenas iniciais (Kidman inclusive urina banalmente de porta aberta) atentas à “humanidade” longe da idealização sobre abastados da Big Apple e astros de cinema. Especulações acerca da inspiração maçônica para o ritual visto no filme ficam em segundo plano quando se percebe a real intenção de Kubrick: explorar as complexas vias pelas quais o desejo escoa do nascedouro até a superfície. No final, a culpa evidenciada por meio do choque entre o objeto do “pecado” e o da paixão serve como desculpa para o homem confessar suas falhas em busca de absolvição. Bill e Alice seguem em frente, não sem sequelas, mas saltando pactualmente sobre neuroses e obsessões, uma vez conscientes de sua primal fragilidade. 


Publicado originalmente no Papo de Cinema

2 comentários:

  1. Boa, Celito!
    Está aí mais um filme do Kubrick para minha já extensa lista.

    Forte abraço.

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  2. Assista, Rafa, acredito que você irá gostar muito.

    Abraços

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