Vencedor do Oscar de Melhor Filme
Estrangeiro em 1998, Caráter, estreia
em longas-metragens do cineasta holandês Mike Van Diem, é quase todo narrado na
frieza de uma delegacia, onde o jovem advogado Jacob Katadreuffe (Fedja Van
Huet) passa por inquérito, pois suspeito de ter matado o oficial de justiça Drevenhaven
(Jan Decleir), seu próprio pai. O entorno não surge ao acaso, sobretudo se
atentarmos ao desenvolvimento da trama, que se dá entre os anseios sentimentais/psicológicos
dos personagens e um sistema desalmado, teimoso em lhes diminuir qualquer
aspecto de humanidade. A busca do rapaz será motivada tanto por querer a
atenção paterna, quanto pela angústia frente à mãe em permanente estado de
torpor. No campo simbólico, ambos os genitores são partes da típica engrenagem
social pós-Primeira Guerra Mundial, responsável por endurecer a natureza das
pessoas.
Na condição de criança, Jacob
sente falta do pai (ausente) e da mãe (presente), ao passo em que cresce num
mundo mais voltado à valorização de carreiras, imprescindíveis à reconstrução
da Europa, do que propriamente atento às suas necessidades afetivas. “Não
precisamos dele”, diz a mulher quando indagada pelo filho a respeito do pai. Van
Diem constrói pela via estética uma atmosfera bem pertinente ao seu conto
calcado na burocracia dos governos e na importância cada vez mais acentuada da
lei e de seus oficiais como agentes de ordenação do então caos europeu. Nesse
tocante, Drevenhaven simboliza o fascismo, o poder vertical. Por sua vez, a
reconstrução de época não se presta ao realismo, traz algo de fabular à
trajetória de Jacob.
Adulto, Jacob vai angariar forças
para peitar o pai, ao passo em que se desliga da mãe, primeiro tentando o
próprio negócio, depois se afundando em estudos para virar advogado do
escritório para o qual trabalha como assistente. Afrontar a autoridade paterna
é questão de honra a esse rapaz possuidor de um vazio existencial relacionado ao
meio convulsionado e complexo onde cresceu. Ele não tardará a conhecer uma jovem
pretendente, a ensaiar ligações afetuosas, mas sempre parecerá atraído às
motivações do próprio pai, do burocrata insensível que certa vez negou sua
existência num momento de necessidade. Jacob, em alguma medida, se aproximará
perigosamente do destino solitário e cinzento do velho Drevenhaven, repetindo
assim, e sem perceber, padrões anteriormente condenados.
Caráter é um filme seco, onde as emoções ressoam no espectador,
paradoxalmente, pois escassas nos personagens petrificados pela falta de carinho.
Sobreviver é primordial, nem que para isso sejam sacrificadas as ligações
sentimentais. Jacob até tenta remar contra a maré, buscar o pai, resgatar a mãe
da inércia, amar a colega de trabalho, mas é vencido pela máquina que buscava
destruir, justo após aliar-se a ela para vencer.
Publicado originalmente no Papo de Cinema
Interessante, Celito, muito interessante.
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