Aproveitando a visita do Papa
João Paulo II ao Brasil em 1997, e a consequente comoção de tal presença, o
cineasta Eduardo Coutinho pôs-se a investigar certos aspectos da religiosidade
brasileira em Santo Forte. Para isso,
fez um recorte, instalando-se numa pequena comunidade na Gávea, bairro da Zona
Sul do Rio de Janeiro, para nela identificar, num nível mais evidente, os
cruzamentos das doutrinas para a formação complexa das crenças locais, e, nas
entrelinhas, o próprio percurso até as religiões, os aspectos sociais e
antropológicos que estão na base da relação enraizada, ora na tradição, ora na
ocasião, entre pessoas, santos e outros guias de um possível plano mais elevado
da existência.
A comunidade é humilde, abriga gente
cuja sabedoria tem mais a ver com a vivência do que necessariamente com
qualquer experiência nos bancos escolares. Povo sofrido esse que encontra
alento nos braços do catolicismo enquanto segue também a doutrina dos orixás.
Aliás, o diálogo da fé cristã com as religiões de origem africana perpassa todo
Santo Forte. Percebe-se, por exemplo,
que as pessoas se dizem católicas, ocultando as práticas no terreiro num
primeiro momento, não por medo de discriminação, mas por ficarem realmente entre
duas tradições, a brasileira de nascimento e a africana da origem remota,
optando comodamente pela mais corriqueira enquanto “oficial”. Como sempre,
Eduardo Coutinho não esboça qualquer sinal de julgamento, está ali para fazer
emergir complexidades.
Também como de costume, o
cineasta expõe a feitura de seu filme, mostrando entrevistados na assinatura de
termos de cessão de imagem e deixando a câmera aparecer, ou seja, abolindo de
alguma maneira a chamada quarta parede responsável por nos separar daquilo que
assistimos, aproximando-nos, assim, do cotidiano alheio, sem traços de invasão.
Estamos inequivocamente vendo um filme, onde mesmo o mais sincero dos
depoimentos está sob a ordem dos signos cinematográficos. Ligada, a câmera não
capta a verdade, mas sim derivados, muito próximos ou muito distantes da dita. Novamente,
Coutinho intermedia com habilidade ímpar a relação entre a câmera e o depoente,
fazendo deles íntimos.
Santo Forte utiliza as três vertentes religiosas mais disseminadas
no Brasil para discutir, a partir do então oportuno momento, a função da crença
na vida das pessoas, ainda que não o faça sem certa redundância. Sofredores que
encontram na devoção a base para o dia a dia não se importam em batizar os filhos
pela manhã com as bênçãos do padre e à noite num cenário repleto de fumaças e
das bebidas favoritas dos Pretos Velhos. Tal contradição não lhes incomoda,
pois seu pacto é com própria fé com a qual abrandam boa parte da carga
cotidiana.
Publicado originalmente no Papo de Cinema
Muito bom, Celo. Preciso arrumar um tempo para ver uns documentários :)
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