domingo, 9 de novembro de 2014

O Estranho Caso de Angélica


O tempo é o alicerce principal do cineasta Manoel de Oliveira para a construção de O Estranho Caso de Angélica. Ironia, ou não, Manoel é quase tão longevo quanto o próprio cinema (tem 104 anos), então ninguém mais capaz de uma reflexão como esta, onde a finitude espreita a vida como se dela fosse parceria íntima, pronta para roubar-lhe a vez. Na trama, o jovem fotógrafo português/judeu Isaac (Ricardo Trêpa) é chamado no decorrer da madrugada para fotografar a filha de uma família importante, que jaz morta após acidente. Ao observar a falecida pela câmera, o insólito acontece: Angélica (Pilar López de Ayala) abre os olhos e lhe sorri. Através da lente surge mágica, o improvável se contradiz e a ideia de morte é posta em xeque. Bela maneira de aludir ao poder do cinema.

Como era de se esperar, Isaac fica transtornado e logo cai numa obsessão sem volta pela desconhecida, cujo sorriso pós-morte lhe trouxe algo que, em vida, provavelmente nenhum outro conseguiu. Seu registro da labuta diária dos trabalhadores braçais, contrapostos à modernidade e suas máquinas de desempregar gente, é outro indício de que O Estranho Caso de Angélica reflete sobre o decorrer inexorável do tempo e as consequentes transformações oriundas desse movimento lento, porém constante. Aliás, a própria atmosfera do filme nos desorienta entre passado e presente, pois se na pensão e na própria Quinta onde o protagonista fotografa Angélica – local que deixa ver na fachada os sinais do tempo (novamente ele) – se respira algo do passado, relances outros nos trazem irremediavelmente o presente, incluindo aí as preocupações contemporâneas reveladas durante conversa entre intelectuais.

A vida de Isaac passa a gravitar em torno de Angélica, aquela de nome alusivo aos anjos. É como se depois de extasiar-se frente ao desconhecido e, por que não, ao amor, o fotógrafo passasse o restante do filme se preparando para seguir caminho então definido, aliás, o único possível para aproximá-lo verdadeiramente da amada. Sendo assim, o controle sobre sua cronologia, de alguma maneira poder de vida e morte, no fim das contas faz dele senhor da própria vontade, mesmo que pareça refém de uma paixão infundada no mais das vezes. O longa tateia bravamente o metafísico quando os sonhos absurdos ganham corpo (ou espírito) real dentro da diegese.

O Estranho Caso de Angélica é filme difícil de classificar, não atende convenções. Por exemplo, a imobilidade dos coadjuvantes no desenrolar de determinadas cenas, prato cheio para deflagrar uma “teatralidade” incômoda, sob a regência de Manoel torna-se artifício de grande expressividade, soa como parte indissociável do contexto, não elemento deslocado.  Essa “naturalidade” também se aplica ao fantástico, integrado organicamente à trama. Em dias de entretenimento ligeiro e completamente esquecível, cortados, vez ou outra, por exceções animadoras, O Estranho Caso de Angélica é, além disso, fruto de outro tempo, de alguém que faz hoje o grande cinema de outrora. A jovialidade artística de Manoel de Oliveira, atributo sem igual, é um paradoxo e tanto.


Publicado originalmente no Papo de Cinema

3 comentários:

  1. Adorei o texto e fiquei com desejo de ver o filme! Obrigada, Marcelo, por compartilhar conosco suas valiosas opiniões!

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    1. Muito obrigado, Lourdinha, eu que agradeço a leitura e o carinho de sempre.

      Beijos

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  2. Muito bom, Celito.
    Tenho de assistir aos filmes do Manoel. Obrigado por mais uma boa dica.

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