domingo, 7 de dezembro de 2014

Instinto Materno


Não é de hoje que o cinema romeno se destaca no cenário das produções europeias. Particularmente, uma geração recente de artistas parece empenhada em acertar contas com o passado, expondo heranças que a ditadura Ceausescu legou ao povo. Filmes de tons muito diferentes como 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias e A Leste de Bucareste, por exemplo, apresentam, cada qual à sua maneira, uma vontade latente de entender a Romênia de outrora que, ainda hoje, se vê presa a velhos fantasmas. Instinto Materno é, a princípio, um filme sobre a obsessão de Cornelia (Luminita Gheorghiu) pelo filho de 32 anos, Barbu (Bogdan Dumitrache), a quem ainda trata como criança desamparada e dependente de seus cuidados constantes. Mas essa relação expõe algumas fraturas sociais alusivas ao todo, ou seja, vai do micro ao macro.

A mulher que seduz a empregada para dela tirar informações a respeito de trivialidades, tais como a arrumação da casa do filho e outros insumos de críticas dirigidas à nora (vista inevitavelmente enquanto rival), é também capaz de tudo que estiver ao alcance para minimizar a punição ao mesmo filho que logo vai matar por atropelamento um menino de 14 anos. Na delegacia, confronta autoridades, alheia à dor da família que chora a perda definitiva de um ente querido. Cornelia só quer salvar Barbu, mesmo que para isso precise adulterar depoimentos e comprar a ética do outro. Aliás, a polícia que no calor do momento se mostra arredia à arbitrariedade da senhora de alta classe, em menos de 24 horas aparece “domesticada” por sua teia de contatos nas mais altas esferas, e, mais ainda, dispondo disso para proveito próprio.

O cineasta Calin Peter Netzer mantém esteticamente o itinerário do cinema romeno contemporâneo, ou seja, câmera na mão e situações apresentadas de maneira seca, sem floreios visuais. A pegada social não se dá como que impressa num panfleto, surge nas entrelinhas, menos no puro contraponto da vida burguesa com a massa desamparada, e mais no poder dos abastados que, invariavelmente, serve para alargar ainda mais o abismo existente entre seus direitos/deveres e os equivalentes da camada menos favorecida. Cornelia, então, de alguma maneira representa o Estado obcecado por controlar a vida de seus “filhos”, estes cada vez mais acuados diante de desmandos travestidos de cuidado, de atenção. Mesmo nas cenas de emoção, Netzer ressalta o calculismo dessa protagonista preocupada com seu lado, ou, quando muito, em abrandar o peso da própria consciência.

A jornada da mãe em busca da salvação do filho se confunde com a própria necessidade que ela tem de sentir-se no domínio, onipotente diante de qualquer adversidade. Aliás, o controle lhe é muito caro, parte indissociável tanto de sua classe social, quanto da própria índole por ela moldada. Quando Barbu diz ser necessário a geração da mãe desaparecer, não se refere apenas a rusgas num nível íntimo, mas à mentalidade que subjuga fracos para manter-se hegemônica.  Instinto Materno faz da dinâmica entre mãe e filho um exemplo vivo da necessidade de impor limites aos dominadores, isso se quisermos igualdade e liberdade.


Publicado originalmente no Papo de Cinema

2 comentários:

  1. Em Relatos Selvagens também há um quadro sobre o tema levar vantagem se aproveitando do sistema . Afinal a civilização tem a sua hegemonia noa padrões culturais onde fatos são versões e justiça uma fatalidade.

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  2. Bah, Celito, fiquei com muita vontade de assistir.
    A história logo me remeteu ao episódio recente da Prefeitura do Rio e seu anúncio infeliz, em que os alunos seguem numa esteira fabril. O controle social e seus malefícios ao particular.

    Forte abraço.

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