Não é de hoje que o cinema romeno
se destaca no cenário das produções europeias. Particularmente, uma geração
recente de artistas parece empenhada em acertar contas com o passado, expondo
heranças que a ditadura Ceausescu legou ao povo. Filmes de tons muito
diferentes como 4 Meses, 3 Semanas e 2
Dias e A Leste de Bucareste, por
exemplo, apresentam, cada qual à sua maneira, uma vontade latente de entender a
Romênia de outrora que, ainda hoje, se vê presa a velhos fantasmas. Instinto Materno é, a princípio, um
filme sobre a obsessão de Cornelia (Luminita Gheorghiu) pelo filho de 32 anos,
Barbu (Bogdan Dumitrache), a quem ainda trata como criança desamparada e
dependente de seus cuidados constantes. Mas essa relação expõe algumas fraturas
sociais alusivas ao todo, ou seja, vai do micro ao macro.
A mulher que seduz a empregada
para dela tirar informações a respeito de trivialidades, tais como a arrumação
da casa do filho e outros insumos de críticas dirigidas à nora (vista inevitavelmente
enquanto rival), é também capaz de tudo que estiver ao alcance para minimizar a
punição ao mesmo filho que logo vai matar por atropelamento um menino de 14
anos. Na delegacia, confronta autoridades, alheia à dor da família que chora a
perda definitiva de um ente querido. Cornelia só quer salvar Barbu, mesmo que
para isso precise adulterar depoimentos e comprar a ética do outro. Aliás, a
polícia que no calor do momento se mostra arredia à arbitrariedade da senhora
de alta classe, em menos de 24 horas aparece “domesticada” por sua teia de
contatos nas mais altas esferas, e, mais ainda, dispondo disso para proveito
próprio.
O cineasta Calin Peter Netzer
mantém esteticamente o itinerário do cinema romeno contemporâneo, ou seja,
câmera na mão e situações apresentadas de maneira seca, sem floreios visuais. A
pegada social não se dá como que impressa num panfleto, surge nas entrelinhas,
menos no puro contraponto da vida burguesa com a massa desamparada, e mais no
poder dos abastados que, invariavelmente, serve para alargar ainda mais o
abismo existente entre seus direitos/deveres e os equivalentes da camada menos
favorecida. Cornelia, então, de alguma maneira representa o Estado obcecado por
controlar a vida de seus “filhos”, estes cada vez mais acuados diante de
desmandos travestidos de cuidado, de atenção. Mesmo nas cenas de emoção, Netzer
ressalta o calculismo dessa protagonista preocupada com seu lado, ou, quando
muito, em abrandar o peso da própria consciência.
A jornada da mãe em busca da
salvação do filho se confunde com a própria necessidade que ela tem de
sentir-se no domínio, onipotente diante de qualquer adversidade. Aliás, o
controle lhe é muito caro, parte indissociável tanto de sua classe social, quanto
da própria índole por ela moldada. Quando Barbu diz ser necessário a geração da
mãe desaparecer, não se refere apenas a rusgas num nível íntimo, mas à
mentalidade que subjuga fracos para manter-se hegemônica. Instinto
Materno faz da dinâmica entre mãe e filho um exemplo vivo da necessidade de
impor limites aos dominadores, isso se quisermos igualdade e liberdade.
Publicado originalmente no Papo de Cinema
Em Relatos Selvagens também há um quadro sobre o tema levar vantagem se aproveitando do sistema . Afinal a civilização tem a sua hegemonia noa padrões culturais onde fatos são versões e justiça uma fatalidade.
ResponderExcluirBah, Celito, fiquei com muita vontade de assistir.
ResponderExcluirA história logo me remeteu ao episódio recente da Prefeitura do Rio e seu anúncio infeliz, em que os alunos seguem numa esteira fabril. O controle social e seus malefícios ao particular.
Forte abraço.