domingo, 28 de junho de 2015

Doses Homeopáticas #45


Assistir a CIDADÃO KANE em tela grande é algo quase solene. Orson Welles trabalha com uma gama impressionante de procedimentos para construir a vida do magnata Charles Foster Kane. Tudo transcorre como uma investigação jornalística, o que confere dinamismo singular à narrativa. Welles, então um garoto dirigindo seu primeiro longa-metragem, inovou em diversos aspectos, demonstrando a criatividade que o levou a ser considerado um dos maiores cineastas de todos os tempos, inclusive a despeito dos problemas que teve durante o restante da carreira com os produtores. A profundidade de campo, a cenografia, o uso do forte jogo expressionista de luzes e sombras, são muitos os artifícios que mostram como esse filme está à frente de seu tempo. Orson Welles consegue apresentar a ambição desmedida do protagonista, ele que não se importa em transformar seus jornais em veículos sensacionalistas, desde que a tiragem aumente constantemente, assim como sua psique fraturada por traumas do passado, moldes de uma personalidade essencialmente carente. Um dos grandes filmes da história, daqueles que a cada audiência apresenta algo novo que salta aos olhos.


No início de QUANDO MEUS PAIS NÃO ESTÃO EM CASA há a impressão de que não vamos aguentar aquele garoto malcriado por muito tempo. É uma traquinagem atrás da outra, na escola ou com a empregada filipina recém-contratada pelos pais, a quem ele faz questão de tratar mal. Contudo, aos poucos, a câmera quase invisível de Anthony Chen vai capturando as dificuldades de cada um, do pai que perde o emprego e se vê acuado pela situação econômica complicada de Singapura, da mãe que testemunha a demissão dos colegas de trabalho e da própria Therry, jovem que migrou em busca de melhores oportunidades. Nesse mundo de adultos se engalfinhando por ocupação, sobra para o menino, que reage da maneira como pode, chamando atenção à própria impossibilidade de entender a turbulência, inclusive emocional, pela qual passam os adultos ao seu redor. Anthony Chen é carinhoso com os personagens, mas nem por isso deixa de jogar em seus ombros o peso das consequências, a realidade nua a crua de uma sociedade em que a falta de perspectivas abate sem dó nem piedade. A privação não é apenas financeira, mas, sobretudo emocional, nesse belo drama familiar de ressonâncias tão sutis quanto fortes.    


A DOCE VIDA é um daqueles filmes acima do bem e do mal. Marcello é um jornalista de trânsito livre pelas mais diversas esferas da sociedade italiana, sobretudo a romana. Cobre eventos díspares, tais como as peregrinações religiosas e o mundo do próprio cinema. Como personagem, sua maior função é catalisadora. As andanças deflagram uma sociedade religiosa (ou, ao menos, ainda bastante influenciada pelos preceitos católicos), fútil, afeita ao sensacionalismo e cultora de valores fugazes. A burguesia é vista como um exemplo latente de certa letargia, de um povo inanimado e tomado pelo fastio existencial. Mastroianni flerta e eventualmente conquista mulheres, mantém relacionamento sério com uma garota patologicamente ciumenta, testemunha a fé sendo feita mercadoria midiática, passeia pelos salões da aristocracia endinheirada, fica à espreita nas calçadas do centro de Roma, de onde sempre se pode sair com uma boa história, isso enquanto gradativamente vai enterrando suas aspirações literárias, o desejo de fazer arte, uma arte simples, destituída de retóricas. Federico Fellini faz uma obra-prima, do tipo que podemos ver repetidas vezes sem lhe esgotar. Listas suas cenas antológicas seria estender demais o texto. Coisas de um tempo em que o cinema italiano era, senão o mais, um dos mais importantes do mundo.

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