Há uma clara mudança de tom entre
as partes I e II de Ninfomaníaca
(2013). A sequência praticamente abole as gracinhas visuais e outras distrações
que tornavam certas passagens burlescas além do devido. A própria Joe (Charlotte Gainsbourg) se
incumbe de recriminar as inúmeras associações, entre equações matemáticas e
técnicas de pescaria, que Seligman (Stellan Skarsgard) fez até então para
enquadrar seu vício em determinados padrões. Outro elemento que dá novo sentido
ao diálogo central é a revelação da natureza do homem que, em princípio contraposto
à protagonista, talvez seja o melhor ouvinte que ela poderia desejar. A partir
daí, ele se afasta naturalmente da figura de confessor e/ou analista e passa a
ouvi-la como um amigo.
A passagem de Joe para a vida
adulta também torna as coisas mais, digamos, sombrias. É como se na
adolescência fossem menos destrutivos os impulsos da protagonista, pois ainda
sem a carga das responsabilidades que naturalmente vêm com o tempo. Assim, fica
ainda mais difícil para ela conviver com a brutal dissociação entre sexo e
amor. Amando, ela pouco ou quase nada sente fisicamente; gozando, ela parece
impossibilitada de desfrutar das benesses do amor. Por outro lado, seu marido Jerome (Shia
LaBeouf) sente cada vez mais o peso de não satisfazê-la, o que num primeiro
momento será resolvido por meio da abnegação, mas que não tardará a entrar num
terreno labiríntico de solução aparentemente inviável.
Lars von Trier aborda esses dilemas
em Ninfomaníaca: Volume II com muita
agudeza, apresentando o sofrimento dos personagens como conseqüência de suas particularidades
elementares. Os paralelos entre as situações, sobretudo os intercursos sexuais,
e a religião, sendo o melhor deles aquele que toma como exemplo as diferenças
cabais entre cristianismo ocidental e oriental, estão ali para chocar os velhos
dogmas das crenças com as pulsões humanas. Uma discussão sobre gêneros, mais
para o final, tem essa mesma função, a
de fazer de Joe uma extremidade pela qual chegaríamos a contendas tão
enraizadas como incontornáveis em nossa sociedade.
O grande pecado do projeto Ninfomaníaca foi sua divisão em duas
partes, uma vez que elas se complementam, formando um todo coeso e bastante
pungente. O que não se deixa ver na primeira parte absolutamente prejudicada
por um excesso de artifícios, aparece na crueza da segunda parte, tanto que ela
ilumina de maneira insuspeita os expedientes engraçadinhos demais de sua
antecessora. É como se von Trier nos levasse à queda livre após breve e um
tanto entediante vôo de paraquedas. No cenário de degradação que caracteriza Ninfomaníaca: Volume II, o
autoconhecimento pode ser o caminho, não para a redenção, mas rumo à compreensão
para viver relativamente em paz com as próprias questões.
Publicado originalmente no Papo de Cinema
0 comentários:
Postar um comentário