terça-feira, 19 de janeiro de 2010

As mães do nosso cinema


A maneira como os personagens são tratados, estudados, encarados, geralmente define toda uma postura cinematográfica, aponta a direção para a qual o diretor quer nos levar. Retratar personagens maniqueístas, unidimensionais, arquétipos ou porta-bandeiras de estereótipos, geralmente é o caminho mais curto para a falta de profundidade de uma obra cinematográfica. Eles, os personagens, que podem tanto ser meio como fim, nesta tarefa hercúlea de se contar uma história no cinema (sim, porque um filme depende de tantos fatores e inteligências para se configurar em êxito que não seria pessimismo dizer que fácil e corriqueiro é um filme ruim, um bom é exceção), são elementos, como reforçado ainda há pouco, centrais para que uma proposta ética/estética se converta num filme que tenha alguma relevância, seja no cenário do cinema ou mesmo como peça desta engrenagem social que nos move, que nos incita, ou não, a refutar a inércia. Não sou ingênuo a ponto de pensar que somente os personagens, a forma como são construídos e apresentados, podem carregar sozinhos este peso de tornar qualquer filme bom ou ruim. Seria burrice afirmar tal coisa, principalmente numa forma de arte tão complexa e completa como o cinema, na qual diversos elementos precisam comungar para o sucesso. Mas que os personagens são o núcleo desta célula, as forças motrizes de qualquer história e formalismo cinematográfico, isso não há de se negar.

Toda esta introdução, que pode parecer tergiversão para alguns, mas, para mim, autor do mesmo, se configura como ponto de partida para o pensamento vindouro, é para tentar, em poucas palavras, analisar a construção dos personagens no cinema brasileiro, e se não bastasse o estreitamento da visão para terras nacionais, ainda fecho o foco um pouco mais nas mães dos filmes nacionais. Se me permitem mais uma redução na busca do pensamento coeso e na não perda das rédeas do pensamento, tomo como exemplo a Dona Lindu, mãe de Luis Inácio da Silva, em Lula - O Filho do Brasil, de Fábio Barreto, e Mércia, mãe da família disfuncional de Feliz Natal, de Selton Mello. Aviso que não vi o filme de Fábio Barreto, mas verão que para a análise a qual me proponho, me bastam as descrições da sinopse e um ou outro perfil lido na internet, dado o corriqueiro e cansativo registro de Barreto. Dona Lindu, ao que parece, é uma mãe determinada, personagem que nasceu na pobreza, ou seja, é uma guerreira. Dá-se a alcunha de guerreira, pois ela nasce na adversidade, luta como uma leoa pela sobrevivência dos filhos e pelo caráter dos mesmos. A mãe pobre do cinema nacional tem de ser assim: um exemplo a ser seguido, uma mártir que empenha sua vida como oferenda a seus herdeiros, bem como se convencionou, nesta generalização. Uma das únicas exceções que lembro é a líder da família de Linha de Passe, filme de Walter Salles e Daniela Thomas, bem mais dimensionada que a maioria de suas iguais no recente cinema brasileiro, ou seja, mais próxima de uma pessoa de verdade do que a heroína sem poderes que se convencionou mostrar. Passamos a Mércia de Feliz Natal. Divorciada, classe média, alcoólatra, cheia de problemas, de filhos com passado negro, de um ex-marido que prefere o demônio a lhe ver, num entorno recheado de remédios, placebos que suavizam sua dor existencial, que amortizam por hora suas dores espirituais (sem qualquer conotação religiosa). Mércia é uma personagem fascinante por ser multifacetada, complexa, é mãe, mulher, ser inquieto, cheia de buracos, falhas, virtudes, ou seja, mais próximo de um humano crível.

É aí que me pergunto? Somente na classe média ou mesmo na alta (como predominantemente se vê nos folhetins das oito) as mulheres, as mães, são seres falíveis? Será que o cinema, na busca da retratação da camada menos favorecida financeiramente, precisa fazer concessões, necessita da exposição de heróis infalíveis, de exemplos para legitimar sua mensagem? Ou será que coloco o cinema acima da vida, pois, na verdade, quem é pobre não reflete sobre a vida com profundidade, buscando na sobrevivência sua única meta, e no futuro da prole sua única inquietação existencial? Estão fadados ao sofrimento da alma somente aqueles de situação financeira mais estável?

Este texto lança questões, não busca respostas definitivas, pois as mesmas não existem, já que as generalizações, além de burras, fazem com que seu articulador perca qualquer fio de racionalidade, esta da qual se alimenta o pensamento. Na minha humilde opinião, mais do que retratar fidedignamente a parcela pobre da população, o cinema precisa fugir dos vícios, das repetições de fórmulas que dão certo, por seu populismo e comprovada aceitação em massa. As mães pobres do nosso cinema parecem o ideal a ser seguido, incondicionalmente, sem questionamentos, afinal, são mães antes mesmo de serem mulheres, o que, não só é reducionista, como ingênuo e lastimável.

5 comentários:

  1. Olá, Celo!
    Gostei muito do tema que traz à tona e da maneira como lida com ele e suas variáveis. Os modelos são seguidos historicamente, sejam eles no âmbito artístico ou não, como por exemplo, na administração exitosa de determinada empresa ou grupo financeiro. O ser humano tende a guiar seus passos por caminhos desbravados anteriormente por outros e vê com temeridade a possibilidade de abrir clareiras para seu futuro, talvez devido a falta de um caução para eventual obstáculo. O vanguardismo é motivo de júbilo, mas poucos são os que nele se aventuram. Bom, é mais fácil e mais seguro, e nisso me incluo diversas vezes, a celebração ou crítica, negativa ou positiva, à ação galgada na revolução do estabelecido dos que nos rodeiam. Nós, quase que invariavelmente, somos meros espectadores por opção.

    Abraçossss

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  2. Gente, esse blog não pára!! hehe
    Quanta atividade e diversidade cinematográfica :) Adoroo! Me sinto "por dentro" graças aos textos de vocês!

    Por sinal, foi ótimo ter apreciado as impressões de "Lula..." aqui, pois eu não pretendo assistir.
    Sinceramente desde que o filme foi divulgado, não senti vontade alguma de ver, pelo contrário.
    Acho tudo muito sugestivo: o ano de lançamento, a forma como o filme foi divulgado entre outros..

    beijos
    parabéns Celo!

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  3. Rafa, muito bom seu comentário. É bem para isso que serve o blog e as postagens, para que haja uma discussão em tornos destes assuntos que nos interessam.

    Carol, se tu ler novamente o texto verá que eu digo que não assisti "Lula - O Filho do Brasil". Na verdade só utilizei a personagem de Dona Lindu, analisando por meio dos trailers e do que já li sobre o filme, para discutir, numa visão micro, a construção dos personagens no cinema brasileiro. Não sei se algum dia verei o filme, mas não por qualquer discordância ideológico política, mas por achar que o Fábio barreto é ruim mesmo.

    Abraços

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  4. Ahh rs
    Mas esse foi um mero detalhe, se vc nao tivesse falado, isso passaria batido. E pra mim que nao li nada sobre, só vi o trailer, é quase que o filme na íntegra ;)

    beijos
    Carol

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  5. Existem arquétipos, estereótipos e as excessões - sempre tão interessantes. Isso serve para quaisquer personagens de quaisquer filmes, e talvez reflita o apelo que determinado realizador tenta conseguir para com seu público: uma mãe guerreira é interessante, se torna ícone e objeto de empatia. Uma mãe megera faz com que o distanciamento do espectador frente a tal persona torne possível o julgamento e análise da personagem.

    Enfim, talvez tenha sido reducionista... Mas estou com preguiça pra pensar no momento. haha

    Abraços Celo!

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