domingo, 10 de janeiro de 2010

Realidade vs Ilusão

Agora já não é tão comum assim, acho mesmo é que saturou um pouco. Falo sobre os questionamentos, que se agigantaram em quantidade nos últimos dez anos, sobre a fronteira entre ficção e realidade, sobre como o cinema percebe e captura estas duas. Bastava sair um filme dotado de câmeras tremulantes, despojamento de mise-en-scène e lá vinham os especialistas novamente com aquele papo de fronteira entre o real e o imaginário cinematográfico. Evocam alguns, o documentário como representação do real em cena, mas esquecem-se de que quando se sabe filmado, registrado, o ser humano deixa o corpo cotidiano e, automaticamente, cria um outro, tal como se fosse uma emulação edulcorada de si próprio. Ou seja, aproximação com o documental não necessariamente aproxima com o real, certo? Na verdade, pego no pé da última década, mas este assunto é velho, provavelmente tão velho como o cinema. Afinal, as pessoas não acharam que iam ser atropeladas quando o trem filmado pelos Lumiére veio em direção à tela, na primeira sessão pública de cinema? Sim, mas eles estavam diante de algo novo, sem quaisquer precedentes relevantes.

Esta dicotomia realidade/ficção é um objeto de reflexão e estudo interessantíssimo, não tenho dúvidas, mas prefiro me reportar a dois filmes de Lars von Trier, e sua forma peculiar de juntar estas duas vertentes, do que acreditar que, pura e simplesmente, por utilizar não-atores ou mesmo câmera tremulante, um filme se aproxima da verdade, da complexidade do real. Antes, porém, preciso citar Eduardo Coutinho e seu Jogo de Cena, este sim um belo estudo sobre a forma como a dramaturgia influi na verdade e vice-versa. Ali, sob as lentes de Coutinho, vemos algo verdadeiramente fronteiriço, um estudo interessante e não galgado na banalidade do trivial. Chegando a von Trier, um diretor dos mais competentes e polêmicos, duas de suas obras nos oferecem uma profunda reflexão sobre a falsidade da encenação e a aproximação com a verdade, por meio de signos nem sempre tão evidentes. Em Dançando no Escuro, filme que por misturar melodrama, musical e uma pitada do Dogma 95 que o próprio diretor ajudou a fomentar, já merece ser alvo de elogios, a ideia de von Trier não era criar algo excessivamente fantasioso, aproximando assim a jornada de Selma do cotidiano. Paralelo a isso, ele inclui números musicais que nos lembram constantemente de que o que vemos é falso, faz parte da magia do cinema, que nos “ludibria” com nosso consentimento, afinal de contas esta é uma das características dos musicais, refutar todo e qualquer paralelo com o realismo. Já em Dogville, Lars von Trier radicaliza pela não utilização de cenários táteis, o que é uma quebra e tanto com a realidade. A história de Grace flerta substancialmente com o melodrama, num dos gêneros preferidos do diretor, mas a não possibilidade de visualização de cenários poderia ser, segundo algumas teorias que mapeiam o perfil do público atual, elemento de distanciamento, de fuga da atenção do espectador. A habilidade do diretor é tamanha, que lá pelas tantas nos damos conta de que estamos presos à história, de que por mais que ela faça questão de nos lembrar, segundo após segundo, de sua construção ficcional, não há como refutar o ocorrido na tela. Sendo assim, sua “falsidade” não traz consigo o gélido distanciamento, atribuído ao desvendamento do truque que acompanha o cinema desde sempre.

São jogos interessantes, como se o dinamarquês dissesse que não se precisa apoiar totalmente no formalismo da mise-en-scène para aceitar ou não a história que estamos vendo por meio da tela do cinema. A todos que alardeiam o cinema-verdade como salvação da lavoura, como se o espectador não conseguisse mais fazer as conexões com a ficção, precisando assim de uma aproximação, muitas vezes a fórceps, do coloquial (motivo, aliás, pelo qual muitos acreditam terem rareado os musicais), Lars von Trier dá dois exemplos de que instituir verdades inquestionáveis é burrice, que aproximação do verossímil não significa abrir mão da ilusão, da encantadora magia do cinema, que sim, podem-se criar híbridos, que as vertentes não são auto-destrutivas, e que, prioritariamente, se o filme é bom, caso ele se comunique conosco de maneira forte, o formalismo nada mais é, (quando não visto como interessante objeto de estudo e desenvolvimento da linguagem) mera burocracia cinematográfica.

3 comentários:

  1. Que lindo texto Marcelo!! Caramba!
    E independente de Dançando no escuro me agradar ou não, me sinto absolutamente à vontade pra dizer que na minha opinião, esse foi um dos textos mais emocionantes do ponto de vista dos sentimentos de quem escreve, que eu li.

    beijos

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  2. Olá, Celo!
    Belo texto que sugere uma reflexão e tanto. A questão realidade/ficção é bem complexa e um estudo galgado em alguns teóricos que empregam energias a esse respeito, seria interessante e adequado, ao meu ver. Temos um detalhe importante: "Dogville", ainda não assisti, contudo conheço sua fama e a forma como lida com a simbologia da linguagem cinematográfica. Sob uma perspectiva diferente, podemos analisar a não utilização explícita de cenário como uma forma diferente de mostrar o real, desnudar os artifícios comumente inerentes à linguagem em específico do cinema. Abre ao espectador a "verdade", ainda que em meio a encenação e outros meios próprios da arte.

    Abraçosss

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  3. Texto ótimo, que aborda um tema muito pertinente e cita filmes excepcionais. Realmente esse questionamento é antigo, e parece que ele apenas se torna mais complexo quando temos realizadores que, como o Von Trier ou o Coutinho, trabalham justamente pra tornar essa dualidade entre realidade e ficção mais ou menos estreita.

    Enfim, deixa eu ver "Aquele Querido Mês de Agosto" para saber se este seria um filme a ser citado nesse contexto. :)

    Abraços Celo!!

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