domingo, 21 de outubro de 2012

O Som ao Redor


Experiente enquanto crítico de cinema, Kléber Mendonça Filho também é tarimbado na realização de filmes, pois construiu ao longo dos anos uma sólida carreira como curta-metragista. São dele alguns títulos como Recife Frio, no qual faz a insólita dedução de como seria a capital pernambucana caso o calor fosse subitamente trocado pelo frio mais comum aos brasileiros do Sul. Aliar sua erudição cinéfila à vontade e ao talento para produção iria, hora ou outra, desembocar na seara do longa-metragem ficcional (ele já havia dirigido o longa documental Crítico). Dessa maneira, O Som ao Redor é o debut de Kléber no formato. Vem angariando prêmios e aplausos em diversos festivais pelo mundo. Será que “perdemos” um crítico arguto e “ganhamos” um cineasta não menos interessante? 

Em O Som ao Redor, há a observação do cotidiano de uma vizinhança recifense, com todas as diferenças existentes entre seus moradores. Na verdade, o foco se estreita sobre uma rua que passa a ser monitorada por determinado serviço particular de vigilância, conseqüência da necessidade de proteger-se contra a violência urbana desenfreada das cercanias e do próprio vandalismo de alguns moradores. Mesmo calcado num choque social evidenciado pelas relações de trabalho e também por alguns (e reveladores) planos aéreos que delineiam na tela os limites entre a classe média amedrontada e a vida pobre crescente no entorno dessas propriedades duramente supervisionadas, O Som ao Redor passa ao largo do mero choque, até por que não se restringe formalmente ao contraponto social. Então não espere algo como “ricos versus pobres”, pois a observação dos desníveis dessa natureza apenas sublinha a construção. 

Estamos novamente diante das diversas histórias amalgamadas, tão caras ao cinema contemporâneo. A estrutura multiplot funciona em O Som ao Redor, pois Kléber não busca criar ou investigar rigorosamente seus personagens (mesmo que de alguma forma o faça), mas registrar à sua maneira um “estado das coisas”. É percorrendo essa corda bamba, sem perder o equilíbrio, que o filme instaura-se na deliciosa zona de risco habitada enquanto lhe convém, para logo a transpor quase com habilidade de veterano. Assim sendo, não devemos atentar em demasia aos núcleos encerrados em si, mas sim entendê-los como frações indivisíveis de um todo. O rapaz que cuida dos imóveis do avô, um anacrônico senhor do engenho enclausurado em suas propriedades, é tão importante ao filme quanto a mulher de cotidiano perturbado por um cachorro que late intermitentemente, afeita a cigarros de maconha e simples afazeres domésticos. 

Chama a atenção o desenho sonoro de O Som ao Redor, aliás, título mais que pertinente a um filme construído muito fora do quadro, justamente por meio dos sons e ruídos de um bairro orgânico mesmo que inserido num contexto puramente cinematográfico. O uso expressivo da sonoridade mostra a pulsão da vida na rua e confere um tom acima do real ao encenado. O filme, então, fica circunscrito num espaço físico determinado, mas o transcende pelos barulhos externos infiltrados nos planos. Numa cinematografia como a nossa, pelo menos me valendo de olhar retrospectivo recente, não lembro algo empenhado dessa maneira em utilizar as sonoridades, sobretudo os ruídos, com caráter tão significativo. 

O Som ao Redor é uma obra madura, impressionante tecnicamente, assim como exemplar no rigor proposto por seu diretor que, mesmo ainda tateando a identidade criadora, mescla experiências com sensibilidade. O filme é bastante pensado, mas não soa distante como muitos por aí, e isso se deve, em grande parte, à maneira como os personagens são dinamizados na trama. As referências a alguns filmes que volta e meia passeiam na tela, não apoiam o criador como se fossem muletas ou elementos de afago aos espectadores, surgindo mais como piscadelas discretas àqueles que compartilham paixão pelo cinema. O final evoca de maneira engenhosa a tradição nordestina do coronelismo e dos jagunços vingativos que tanto povoam nosso imaginário relacionado àquela região do país. Kleber Mendonça Filho quase chega a ser brilhante em O Som ao Redor, certamente um belo cartão de vistas (como se precisasse) de alguém que ajuda a construir cinema enquanto escreve e desempenha a crítica quando filma. 


Publicado originalmente no Papo de Cinema

2 comentários:

  1. Ah, nem sei o que mais dizer sobre este filme. Dos melhores - se não o melhor - que vi entre mais de 50 filmes no último Festival do Rio, talvez seja também dos melhores que vi este ano. Uma grata surpresa.

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  2. Celo!
    Percebo que a opinião sobre esse filme é quase unânime. Não vejo a hora de ter a oportunidade de comprovar sua qualidade.

    Abraçosss

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