domingo, 23 de março de 2014

Encaixotando Helena


Está aí um filme que muitos amam odiar. Encaixotando Helena é a estreia da diretora Jennifer Chambers Lynch, filha do grande David Lynch, e sua trama funda-se na obsessão do cirurgião Nick Cavanaugh (Julian Sands) frente à beleza tão esfuziante quanto perigosa da prostituta Helena (Sherilyn Fenn). Uma noite de sexo basta para virar a cabeça desse homem atormentado pela mãe recém-falecida, que parece adolescente demasiado afetado se próximo de seu objeto de desejo. Tomado, então, por paixão doentia, o médico armará joguetes destinados a trazer Helena para perto, mesmo sendo avisado constantemente da inutilidade de tais recursos. Após acidente, as coisas assumirão caráter ainda mais insólito, para não dizer bizarro.

Encaixotando Helena, de fato, é um filme repudiado por muitos. Basta rápida pesquisa, indo de cinéfilos a críticos, passando também por espectadores ocasionais, para constatar as dificuldades pelas quais o longa passa em busca de “compreensão”. Longe da dinâmica quase abstrata característica de seu pai (algo entre o onírico e o surreal), Jennifer opta por um viés kitsch, no qual, por exemplo, as interpretações deliberadamente exageradas combinam muito bem com o desenrolar que ressalta o estranho dentro do prosaico. Tudo é uma questão de pontos de vista, e aqui me parece ainda mais imprescindível abraçar sem preconceitos as propostas estética e dramatúrgica, ambas assumidamente fakes.

O Dr. Cavanaugh ama sem medida, de maneira patológica. Helena sucumbe, ou melhor, os membros de Helena sucumbem para fazê-la refém da obsessão de um adulto imaturo e inseguro, cuja psique remonta à criança bastante influenciada pela frivolidade sexual da mãe. As sequelas do trauma são óbvias quando observamos o tipo de mulher que o protagonista procura para adorar: justo alguém à imagem e semelhança de sua progenitora. O próprio simplismo dessa projeção aponta à influência do melodrama, aqui aditivado de algo dos chamados “Filmes B”. Tal imbricamento linguístico sublinha, com força particular, a tragédia mental de Cavanaugh e o calvário físico de Helena.

O saldo de Encaixotando Helena é, sem dúvida, positivo. A história do médico apaixonado que mutila sua amada para dela ser cuidador (mesmo o enredo sendo relativo), é reforçada por um peculiar senso de encenação que, repito, Jennifer não emula do pai. De David, ela parece apenas herdar o gosto por trabalhar gêneros, deformando seus cânones com prazer subversivo. A guinada final - movimento canhestro para alguns - soa quase sem importância ou reverberação, pois, verdade ou não, todo périplo de Cavanaugh e Helena já está impresso na percepção do espectador. Difícil tirar da cabeça a figura de Sherilyn Fenn, sem braços e pernas, num altar elevado frente ao submisso homem que precisa dela para, de fato, sentir-se homem.


Publicado originalmente no Papo de Cinema

2 comentários:

  1. Verdade, Marcelo!
    Todo poder deste homem está na sua submissão àquela imagem. "Helena" paira como um revés necessário para sua conjugação afetiva!

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