domingo, 7 de setembro de 2014

Blue Jasmine


Jasmine (Cate Blanchett) nunca dependeu da bondade de estranhos. Agora depende. Antes uma dondoca da alta sociedade nova-iorquina, ela vê seu mundo de luxos e extravagâncias ruir completamente sob os pés, quando o marido se suicida na prisão após acusações de fraude e estelionato. Sem carreira nem dinheiro, ela recorre à irmã Ginger (Sally Hawkins), moradora suburbana de São Francisco, para abrigá-la nesse recomeço. Decalque de Blanche DuBois, protagonista de Um Bonde Chamado Desejo, de Tennessee Williams, a figura central de Blue Jasmine vai do aparente “céu” dos endinheirados ao “inferno” dos assalariados, não sem um colapso nervoso frente a nova realidade.

O cineasta Woody Allen mais uma vez transita entre burguesia e gente do povo, meio que zombando das “necessidades” da fatia mais abastada, relativizando as felicidades fabricadas apenas por força do dinheiro. Ser rico não é pecado, condenável é se deixar levar pela (efêmera) riqueza, esquecendo atributos essenciais. Como Blue Jasmine alterna passado e presente, vemos Jasmine, por exemplo, fazer caso da irmã pobre, a mesma que mais adiante será seu único ponto de sustentação. Porém, longe daquelas tramas edificantes de transformação, geralmente falsas como notas de 03 reais, Blue Jasmine se destaca justo por não defender as famigeradas mudanças como resultado imediato de nossos erros. Nem todo “crime” tem castigo e/ou arrependimento a ele atrelado. As pessoas são o que são, afirma o sempre tão pessimista (realista?) Woody Allen.

Por outro lado, se Blue Jasmine escapa do comum, muito se deve à interpretação genial de Cate Blanchett, no que a própria definiu recentemente como o melhor trabalho de sua carreira. A socialite destituída da vida de aparências (marido traidor, afinidades superficiais, festas beneficentes ao próprio ego) se torna passível de compreensão e compaixão, dentro das situações propostas, pois “defendida” em sua complexidade por uma atriz, ao que parece, no ápice da carreira. Não fosse ela, possivelmente ficaríamos mais atentos às redundâncias do filme, a certos deslizes responsáveis por torná-lo, vez ou outra, algo estagnado. Blanchett se agiganta em cena e não seria lá tanto exagero dizer: acaba maior que o próprio Blue Jasmine.

Jasmine entra desde já para a galeria dos grandes papeis femininos da filmografia de Woody Allen, um espaço ocupado por Annie Hall (Diane Keaton, em Noivo Neurótico, Noiva Nervosa), Marion Post (Gena Rowlands, em A Outra), Cecília (Mia Farrow, em A Rosa Púrpura do Cairo), isso só para citar algumas. Blue Jasmine observa a decadência financeira da protagonista e seu não renascimento moral /ético, à medida que a circunda de coadjuvantes, entre os críveis e os propositalmente caricatos, para extrair das relações o que elas têm de mais ordinário (e importante). A mescla é conhecida, própria ao trabalho de Woody Allen, cineasta que não vive só de obras-primas, mas cujo trabalho é, para mim, ainda um dos grandes prazeres cinéfilos. 


Publicado originalmente no Papo de Cinema

4 comentários:

  1. Woody Allen é sempre uma boa pedida. Obrigado, Celo.

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  2. Querido Marcelo que bom reviver este filme com você! Para mim, Blanchett se reflete na luz de Jasmine!
    A extravagante, superficial, mentirosa e ingênua ( loura burra) foi capaz de me assustar com uma articulada competência em fabricar papéis e conquistar seus objetivos. O que para mim representava o "ser dondoca" ficou sem sentido. A loura burra e superficial não existia, era pura representação.E Este também é o dom da atriz. Sim, elas duas ( Jasmine e Blanchett) reproduzem papéis sensíveis, apaixonados, refinados e superficiais (neste caso), mas que me convenceram completamente . Ambas articularam com seus expectadores e coadjuvantes (familiares) assegurando a excelência do texto ou da proposta. Vida e Arte me confundiram e ao desvendar Jasmine ( articuladora) descobri Blanchett ( estelar)!

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    1. Bianca, sempre bom ler seus comentários, ter a sua visão que não fica limitada ao objeto em si, mas se amplia a amplitudes e reverberações.

      Muito obrigado
      Beijos

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