sábado, 17 de julho de 2010

O Discreto Charme de Buñuel


O homem não pode limitar-se ao trabalho. Desconfie dos que são somente obstinados pelo ofício, pois deles não se conseguirá extrair muito. Viciados em trabalho devem ter alguma falha, alguma rachadura que nunca se consegue tapar por completo. Temos a visão romântica de que o artista, que subsiste de sua virtuosa relação com a arte, seja diferente, de que viva apenas em função da criação, da expansão de sua labuta artística, ainda em nossa visão apoiada no romantismo, muito mais edificante do que qualquer outra.

Livros sobre personalidades do cinema geralmente fazem alarde quanto às obras, à criação. Não são raros os casos de relatos que bidimensionalizam seu objeto de estudo em busca do viés puramente artístico, numa espécie de negação daquilo que alimenta o artista: a própria vida e suas experiências. Já li alguns ótimos livros dedicados exclusivamente a diretores de cinema: Conversas com Woody Allen, Conversas com Almodóvar, e Imagens, sobre a vida de Ingmar Bergman. Destes, o que mais gostei foi de Imagens, não só por ter como personagem meu diretor favorito, mas por ser o que apresenta em sua narrativa, dividida conforme a filmografia do sueco, mais elementos das angústias de Bergman como ser humano, o que proporciona um entendimento profundo e verdadeiro de suas magníficas criações.

Acabei há pouco (há 6 minutos, para ser correto) Meu Último Suspiro, que fala sobre a vida e obra de um dos maiores diretores de todos os tempos: Luis Buñuel. Já tinha profunda admiração pelos filmes do espanhol, agora esta se encontra profundamente ligada a uma ternura pela pessoa. Buñuel não era homem das letras, ele mesmo diz no começo do livro, portanto chamou seu mais querido colaborador, o roteirista Jean-Claude Carrière, para transformar sua memória prodigiosa em palavras. Lendo, compreende-se a simbiôntica amizade que os unia, pois a narrativa se desenrola de tal maneira íntima, que se não soubesse do processo, refutaria qualquer autor do livro, que não o próprio Buñuel. Por vezes cheguei até a duvidar que o diretor não tivesse entrelaçado de próprio punho os fios condutores da obra, que conta sua vida de maneira comovente, pela entrega à tarefa do relato.

Dar conta de uma vida rica como a de Buñuel não é fácil, ainda mais em torno de menos de quatrocentas páginas. O triunfo de Carrière é a estrutura que repele a cronologia, que vai e volta no tempo, e a entrega do próprio Buñuel em revelar angústias, preocupações e frivolidades com o mesmo afinco. Lutando a vida toda pela revolução, pela queda de desigualdades e por seus personagens e histórias que fugiram do óbvio, nada mais justo que esta biografia seja uma homenagem ao estilo libertário e transgressor de Buñuel, sem que para isto precisasse pintá-lo com tintas de reverência exacerbada ou mistificação em torno de sua arte. Buñuel antes de artista era homem e este espírito que rege Meu Último Suspiro, faz deste um dos melhores livros que já li sobre um cineasta. Saudades de ti, Don Luis.

2 comentários:

  1. Olá, Celo!
    Belo texto, que me faz lembrar que tenho de assistir a muitos filmes do espanhol referido e, futuramente, pedir empréstimo do livro junto à ti.

    Abraçosssss

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  2. Espero estar na fila de futuros leitores do seu livro Celo, sou extremamente interessado nele, ainda mais após ler suas impressões. Já faz um bom tempo que não assisto a um novo Buñuel, mas não me lembro de alguma obra dele que não tenha me agradado, assim como motivado intensos pensamentos sobre a vida, o universo e tudo mais. Buñuel pode causar muitas sensações, mas nunca a indiferença.

    Abraços!

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