domingo, 16 de janeiro de 2011

O Lago do Cisne Negro

 
Geralmente evito escrever sobre um filme logo após a sessão, principalmente quando dele gostei muito, à guisa da emoção. Neste momento, em que o visto ainda não sofreu o processo de decantação, quando ainda não maturou, para sabermos se a experiência por ele proporcionada foi duradoura ou um efêmero deslumbramento, é normal cometermos erros de julgamento, falando precipitadamente. Mas há filmes que me tiram este temor de dar uma opinião apressada, pela maneira como se impõem, pela forma como se apresentam. Cisne Negro, o mais recente trabalho do diretor Darren Aronofsky fez com que eu perdesse o medo do julgamento leviano. Permito-me iniciar dizendo que este é o melhor, mais sóbrio e completo filme da carreira do cineasta, que não mais pode ser tratado como promessa. O artista vive num eterno processo de busca, e Cisne Negro certamente não será o ápice da carreira de Aronofsky, como se este filme fosse o cume, e o porvir somente imitação ou mero descenso. Mas esta obra, pelo menos ao que diz respeito a minha opinião, provavelmente será um divisor de águas, por mostrar a maturidade do artista e de seu olhar.

Em Cisne Negro temos Nina, brilhantemente interpretada por Natalie Portman, que faz uma aspirante a primeira bailarina no famoso Lago dos Cisnes. Se me permitem a digressão e quebra do fluxo do texto, devo dizer que o elenco deste filme é uniformemente primoroso, proeza que podemos delegar aos próprios talentos, sem dúvida, mas, quando há uma coesão tão grande entre os núcleos, não podemos deixar de exaltar o diretor e seu trabalho no campo da dramaturgia. Findo o desvio. Vemos Nina suar, ensaiar exaustivamente em busca do papel principal do espetáculo, um papel duplo, o Cisne Branco e o Cisne Negro. Nina é doce, acanhada, pueril, e se encaixa perfeitamente na tipologia da ave branca, mas tem imensa dificuldade de se soltar, de seduzir e mostrar-se mais imperativa como o Cisne Negro. O que se vê a partir de então são ensaios, os esforços do diretor para que o lado negro desabroche em Nina, sua mãe superprotetora, uma bailarina frustrada que vê na filha a possibilidade do sucesso que nunca alcançou, e uma Nina psicologicamente fragmentada, atormentada por visões, neuroses e uma bailarina novata, não tão obcecada pela perfeição quanto ela, que desestabiliza ainda mais, tanto seu processo criativo quanto sua sanidade.

Cisne Negro é metafórico, simbólico e profundamente pessoal. É um filme movido por sua personagem principal, pelas elucubrações de uma mente que não consegue suportar as pressões: de ser artística e emocionalmente perfeita, de atender as expectativas de um diretor brilhante e de uma mãe que sempre foi farol, de assumir uma posição de destaque, de ser mulher, mesmo quando ainda dorme num quarto perfeitamente decorado para uma menina de dez anos. É um filme que fala do duplo. O opressor e o belo permeiam Cisne Negro, reforçados pela câmera de Aronofsky, que dança junto aos bailarinos, como que nos convidando ao movimento, ao passo que segue quase que incansavelmente uma Nina fracionada. O clima é sublinhado por uma belíssima trilha sonora, que evoca o balé, o Lago dos Cisnes, como metáfora da vida de Nina, e a necessidade que ela tem de, completando o processo de crescimento, alçar um voo como a majestosa e graciosa ave que dá nome a seus personagens. O sexo também desempenha papel fundamental em Cisne Negro, catalisador de diversos processos.

Complexo sem hermetismos, Cisne Negro é permeado por possíveis interpretações psicológicas, por complexos e projeções. Em suas alucinações Nina vê em Lilly seu duplo, como se fosse a faceta negra do cisne gracioso que ela é, mas podemos ver na mãe um duplo possível, caso Nina fracasse como bailarina, e em Beth, a artista por ela substituída, um equivalente futuro, como se aos artistas, o inexorável fluxo temporal e o consequente envelhecimento, trouxesse um final amargurado. Ser substituída é, sem dúvida, um dos maiores temores de Nina. O topo e a queda, percurso incorrigível que se desnuda frente aos olhos da jovem bailarina que vê o fantasma da derrocada oprimi-la, precocemente, assim que o sucesso a alcança. Darren Aronofsky filma a dança de maneira sublime, e dela viramos íntimos, mesmo que nada conheçamos de passos e coreografias. Natalie Portman com sua iluminadora e visceral interpretação, mostra a candura de uma menina, impelida a virar mulher, que não consegue fazer esta passagem sem traumas, estes que evocam fissuras do passado, que as aumentam com o tempo e a pressão. Cisne Negro é um dos grandes filmes da temporada, um pesadelo mental emoldurado por Tchaikovsky. Sem dúvida, um dos filmes mais perturbadoramente belos que vi nos últimos tempos.

3 comentários:

  1. Belo texto Marcelo :) Eu diferente de vc prefiro escrever sob efeito, com o coração na boca como disse no texto sobre "Solidão dos números primos". Inclusive o ato da escrita me ajuda a digerir filmes dessa natureza.
    Esse seu texto movido à emoção tem tudo a ver com o filme em si que nos convoca o tempo todo a sentir fortes emoções, inevitável.
    Natalie Portman está espetacular!!
    Além de linda, dá show em especial nas passagens do cisne branco para o negro e quando vive os conflitos psicológicos com a mãe e com a rival. A cena final é simplesmente linda.
    Vou torcer fervorosamente para que ela ou o filme ganhem alguma coisa!

    Parabéns pelo texto emocionado e muito bem comentado!!

    beijos

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  2. Olá, Celo!
    Belíssimo texto para um filme verdadeiramente inspirador.

    Abraçossss

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  3. Devo apenas parabenizar seu texto, sua leitura e interpretações, e reproduzir o breve comentário que escrevi anteriormente sobre ele: O filme arrebatador que aguardei durante 2010 chegou logo no começo de 2011. "Cisne Negro" é denso, simbólico, singular e merecedor de uma infinidade de bons adjetivos e méritos que, dentre eles, pode até mesmo ser definido como irretocável. Aronofsky foi perfeito. Portman também.

    Abraços Celo!

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