segunda-feira, 23 de maio de 2011

Abutres e a nossa impotência


Pablo Trapero é um dos diretores mais interessantes do, geralmente, inquietante cinema argentino. Versátil, dono de estilo próprio, porém capaz de mutações focais de um projeto para outro, Trapero é daqueles realizadores que merecem nosso olhar atento. Seu mais recente filme, Abutres, não tem, pelos menos num primeiro momento, a comicidade dramática de Família Rodante, a melancolia solitária de Nascido e Criado, ou mesmo a profunda análise de personagem que edifica Leonera, mas se há algo que interligue suas obras (colocando em perspectiva estas que vi) é a opção por trabalhar com gentes e entornos despedaçados. 

Em Abutres a riqueza da linguagem é muito significante, a forma como Trapero faz um filme-denúncia de situações calamitosas na Argentina, por exemplo, do sucateado sistema de saúde pública e da máfia que se esgueira pelas brechas legais para lucrar com as tragédias alheias, mas sem esquecer a profundidade dos personagens, que caminham inexoravelmente para a tragédia. O sempre cativante Ricardo Darín interpreta Sosa, advogado de registro cassado que trabalha para uma firma especializada em lucrar com o seguro pago a vítimas de acidente de trânsito. Martina Gusman é Luján, médica que se vê envolta nestes esquemas escusos, e com Sosa a nível pessoal. 

Neste filme, a Trapero o importante é nos mostrar realidades comumente jogadas para baixo do tapete, como a de médicos que precisam empilhar plantões para sobreviver, emergências caóticas, falta de escrúpulo de profissionais que deveriam auxiliar os combalidos, advogados íntimos do submundo, polícia conivente e recebedora de propina, tudo parte de um esquema para o enriquecimento de poucos, à custa da miséria alheia. Por meio da profundidade de campo que assina visualmente enquadramentos muito próximos dos personagens, e com sua câmera na mão, Trapero nos guia, não como limitador ou indutor vil, e sim como cineasta consciente e afoito em compartilhar o que não mais parece caber apenas em sua indignação. 

Abutres é violento, cru e árido. Por mais que o amor de Sosa e Luján pareça, ora ou outra, dar um respiro em meio a tanto drama, ao sangue que verte abundante na tela, às agulhas que injetam paliativos em Luján com a mesma mecânica com a qual ela trata seus pacientes, o filme é inapelavelmente pessimista. É como se com ele, Trapero dissesse que fugir do “sistema”, esta quimera sem rosto, é praticamente impossível. A reiteração da violência faz parte da busca do diretor, neste poderoso filme de cunho crítico, em que mostra a atual conjectura, não com lentes piedosas ou adocicadas, e sim com a secura desesperada de quem se sente parte dos que são aleijados diariamente por forças muitas vezes invisíveis, mas de toque impiedosamente tangível.

5 comentários:

  1. Celo!
    Parabéns pelos argumentos, tão bem escolhidos como colocados ontem na sessão comentada do filme no Ordovás. Foi ótimo ter a sua presença e suas impressões sobre "Abutres". Quem dera pudessemos adicionar à cada sessão (seja no cinema, em casa, na rua, na chuva, na fazenda, etc.) um diálogo mais apurado como o que tivemos ontem.

    Muito obrigado, guri!
    Abraços!

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  2. Olá, Celo!
    Belo texto. Devido à noite anterior em que fomos à festa do Rau, após estreia de sua peça teatral (até rimou), o sono me pegou de jeito. Pena, pois o cinema argentino é sempre uma ótima opção.

    Abraçosss

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  3. Estou por aqui, lendo e gostando do que está escrito.

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  4. Obrigado à todos pelos elogios ao texto, em especial ao André Setaro, um pensador de cinema que nós, do The Tramps, tanto admiramos.

    Abraços

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  5. Muito bacana seu texto Marcelo!
    Adorei "abutres", achei um trabalho impecável!

    beijos

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