quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Doses Homeopáticas #15


Não é arbitrário em PAIS E FILHOS o cineasta Hirokazu Koreeda voltar as principais atenções a um dos pais das crianças trocadas na maternidade, o homem jovem que devota boa parte do tempo ao trabalho. No filme, muito se discute o valor do sangue, da tradição, da herança deixada de uma geração para a outra. Esse pai workaholic e sua mulher passiva não são apenas visivelmente menos amorosos do que o outro casal, mas vítimas/signatários do legado da geração pós-Segunda Guerra que precisou baixar a cabeça e trabalhar para a reconstrução do país. A alta exigência – da educação à conduta profissional - foi um mal necessário, mas deixou como espólio à cultura nipônica a obsessão pelo eficiente à custa de asfixiar o bom e velho contato humano. Lá pelas tantas, o pai rico diz quando pressionado a ficar mais junto do filho: “ninguém pode me substituir no trabalho”.  Logo após, o mais pobre responde: “ninguém pode lhe substituir como pai de seu filho”. Mais do que representantes de esferas sociais distintas (e se assim estritamente o fossem, o filme seria raso), eles representam visões de mundo opostas nesse excelente filme de Koreeda.


Primeiro longa de Tom Hanks como diretor, THE WONDERS – O SONHO NÃO ACABOU é um daqueles filmes que deixam a gente de alto astral. Se passa na década de 60, quando 09 entre 10 jovens americanos queriam  ser astros de rock. A banda The Wonders, feita de garotos do interior, experimenta num curto espaço de tempo as fases de muitos grupos de verdade, ou seja, o sucesso repentino (neste caso, embalado pelo ritmo contagiante de That Thing You Do!), a euforia dos primeiros shows, um eventual fracasso, o pico e o início dos problemas incontornáveis. A reconstrução de época é um dos pontos altos do filme, assim como a alusão a coisas que hoje nos parecem quase estranhas, como certo fascínio romântico das pessoas pela TV (naquela época ainda um meio de comunicação relativamente novo), uma ingenuidade que permeava as relações e um resquício de fé no outro. Enfim, THE WONDERS – O SONHO NÃO ACABOU é para ver com sorriso no rosto.


Se há uma coisa que falta no Brasil é cinema de gênero. Portanto, de antemão, é de se comemorar uma iniciativa como a do cineasta Marco Dutra, o seu QUANDO EU ERA VIVO. Se no primeiro longa de Marco (co-dirigido com Juliana Rojas), TRABALHAR CANSA, o horror era um ingrediente, aqui ele passa a prato principal. O homem que volta para a casa do pai após a separação encontra seu antigo lar sem qualquer lembrança da mãe morta. Aos poucos, resgata as peças antigas, recoloca quadros, escurece a casa, ou seja, a torna como antes, para desespero do pai que vê o passado retornar. Tudo gira em torno desse adulto ligado à figura da mãe mais por força demoníaca do que necessariamente por saudade. Ainda que seja um filme admirável sob certos aspectos, sobretudo no que diz respeito às ótimas atuações e ao desenho de som engenhoso, QUANDO EU ERA VIVO se ressente da falta de um ponto alto, parece naufragado numa atmosfera bem construída, é verdade, mas que não evolui para além de armadilhas que ele mesmo constrói.


A covardia surge já nas primeiras cenas, filmadas com celulares. Policiais interceptam violentamente jovens numa estação de metrô, até que um deles atira à queima roupa. Retrocesso temporal da imagem amadora para o dia anterior, o último do rapaz que morre por conta do desprepara emocional da polícia. Numa linguagem que busca o tom cotidiano até onde é possível, FRUITVALE STATION – A ÚLTIMA ESTAÇÃO trata de exumar a vida desse rapaz, tomando por base suas últimas 24 horas, mostrando dificuldades familiares, profissionais, o passado criminal, ou seja, tratando de construir uma figura complexa, sem muitos sinais de condescendência, ainda assim vítima da brutalidade desmedida. O diretor Ryan Coogler foge de paternalismos, mas, ao mesmo tempo, lança um olhar fraterno a esse rapaz que buscava começar do zero, reavendo o amor da namorada e cultivando relação próxima com a filha. Em tempos de discussão sobre a validade dos chamados “rolezinhos”, é imprescindível assistir a um filme como FRUITVALE STATION – A ÚLTIMA ESTAÇÃO.


Mais um privilégio: assistir ERA UMA VEZ EM TÓQUIO em tela grande, numa cópia restaurada. O clássico de Yasujiro Ozu é certamente uma obra-prima, se trata de um dos grandes filmes ancorados na família, na dificuldade da relação entre pais, filhos e demais parentes. O casal que vai a Tóquio visitar os filhos é recebido com uma alegria aparente que logo se transforma em desconforto. Para as “crianças” o trabalho sempre é prioridade, as atividades cotidianas não podem cessar, e os pais ficam meio à deriva, jogados de um lado para o outro, encontrando alento apenas na companhia da esposa do filho que provavelmente morreu na Guerra. A capital japonesa não é aquele oásis que os idosos imaginavam, tampouco os filhos estão bem estabelecidos como faziam crer de longe. Ozu registra tanto a família quanto a cidade sem condescendência, ainda que de maneira generosa e acolhedora. ERA UMA VEZ EM TÓQUIO contempla com viés crítico, carregado ainda de doses de melancolia.

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