quinta-feira, 9 de outubro de 2014

O Decálogo - Krzysztof Kieslowski (Parte II)


Segunda e última parte das impressões da amiga Bianca Siqueira a respeito de Decálogo (1989), minissérie televisiva polonesa, concebida e dirigida por Krzysztof Kieślowski.
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Não pecarás contra a castidade

Jovem rapaz espiona (através da janela) sua vizinha e se apaixona por ela. Inventa inúmeras situações para vê-la e se contenta apenas com isto. Magda, a vizinha, sabe que tem um observador, mas não desconfia de Tomek. Seu apartamento é frequentado por diferentes homens com os quais ela tem relações sexuais, deixando o jovem Tomek enciumado e cada vez mais determinado a fazer parte da sua vida. Esta determinação acarreta na revelação das suas manobras de aproximação e das espionagens realizadas através da janela. Magda então prepara uma revanche para castigar seu indiscreto observador.  Mas este castigo acaba por revelar a distância que ambos estavam do Amor. A castidade do jovem Tomek é ridicularizada assim como a existência do Amor. As feridas causadas por este embate realçam outras tantas já hospedadas na alma e os cuidados recebidos serão oportunos.


Não Roubarás

Mãe e filha são separadas em nome da moral e bons costumes vigentes. A matriarca da família (avó) assume a educação da neta (agora filha) e distancia ainda mais os laços diretos (verdadeiros) entre elas (agora irmãs). Esta atitude moralista corroborada pela sociedade implica na estruturação de mentiras, estigmas, rancores, medos... E uma assepsia nas emoções. Esta conduta acaba por desumanizar as relações interpessoais e indicar-lhes um personagem cultural desejado. Uma mãe deve ser arrumadinha, casada com homem do mesmo circulo social, com certa idade e estudos completos. Esta personagem idealizada não cabia em uma jovem adolescente grávida do namorado (professor). É neste solo que Majka (mãe roubada de sua condição) se organiza e foge semeando a dúvida, estremecendo valores, implodindo a sua família... Ela busca sua identidade, mas não encontra terreno para conhecê-la.


Não levantarás falso testemunho

Professora de ética discute em sala de aula com seus alunos uma situação em que um bebê está em risco de morte por conta da moral e bons costumes da localidade. Ela ressalta que a ética, neste caso, deve ceder lugar à mentira (falso testemunho), pois a vida humana está acima das ponderações ou valores incidentes sobre ela. Curioso ver que fato similar a este ocorreu no passado com esta mesma professora, então jovem mulher católica. Na ocasião, a jovem estava amedrontada com a perseguição aos judeus (nazismo) e as ponderações éticas e cristãs sobre a vida pareciam valer mais que uma criança judia sob sua responsabilidade.  Esta jovem mulher abandonou a criança judia em nome destas ponderações (testemunho de fé) culturais vigente.


Não desejarás a mulher do próximo

Um casal apaixonado se vê diante da impotência sexual. Consideram que o Amor entre eles é mais forte que os desejos da carne, mas esta convicção não se sustenta por muito tempo. Ambos se atraem pelas paixões dos sentidos e, se deparam (cada qual a seu modo) com objetos, ligações misteriosas, cartas, excitação no trabalho e códigos secretos. Passam a viver uma rotina de segredos e mistérios até que o amante “potente” é desvendado. É neste momento que o casal passa a se olhar por inteiro e a constatar que o vazio experimentado (da impotência) ainda permanecia. Esta descoberta dolorosa seria necessária para que aquelas feridas pudessem receber cuidados.


Não cobiçarás coisas alheias

Dois irmãos se reencontram no enterro de seu pai e descobrem a herança valiosa em selos (coleção) que acabam de ganhar. Ao estimarem o valor deste bem, ficam completamente absorvidos por ele. Passam a obter conhecimentos sobre a prática dos colecionadores, o mercado (comércio) de selos, etc. Vendem seus próprios pertences para proteger o patrimônio adquirido e acumularem mais (novas) peças. Mas, o que a princípio parecia ser um benefício, uma dádiva, se tornou uma armadilha para suas almas. O “espírito da coisa” se reverteu em cada vez mais acumulação de valores e na proteção destes cobiçados itens.  Para obterem segurança deste patrimônio herdado necessitavam da aquisição de trancas, códigos, estratégias, alarmes, e o cofre que construíram  permitiu que eles próprios fossem tomados como moeda.

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Após assistir os dez episódios/ mandamentos, podemos notar o paralelo traçado por Kieslowski entre a cultura (ética) e a vida humana. Para ele o sentido da vida (o espírito) não está sempre vinculado ao sentimento calcado nos usos e costumes de um povo. A ética e a civilidade, sim, pois estas nascem do vínculo afetivo social predominante. Mas a base anímica alcança apenas o ser humano em sua singularidade afetivo/ emocional. Esta carece de liberdade e de expressão. E o homem está para além da sua alma (cativa) ou das suas conformidades culturais.

Para nos ajudar a entender este paralelo entre alma e espírito, Kieslowski alinhava os dez episódios pela paixão, tradição, medo, lógica, religião, ética... Cultura. Faz isto através dos seus personagens comuns (O cão morto, o pai do menino prodígio, o médico, o casal, o carteiro...) permitindo a comunicação entre eles e as “mazelas” de suas almas.  Mas ele também nos permite a existência de outro personagem que está em todos os episódios (só não vi no ultimo); um rapaz loiro, que não sofre, não trama, não fala, não se submete às paixões, mas está vestido, participa das aulas, viaja, enfim, está como nós, mas não está preso às nossas paixões ou à nossa ética. Podemos elucubrar que o sentido da vida está para além do entendimento psíquico (alma) ou lógico. E que o espírito (que é livre das amarras culturais e anímicas) nos revela algo mais sobre nós.  


Por Bianca Siqueira

Um comentário:

  1. Deu saudade de quando assistimos, Celo, ainda mais num texto tão rico e enriquecedor. Grande abraço.

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