Segunda e última parte das
impressões da amiga Bianca Siqueira a respeito de Decálogo (1989), minissérie televisiva
polonesa, concebida e dirigida por Krzysztof Kieślowski.
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Não pecarás contra a castidade
Jovem rapaz espiona (através
da janela) sua vizinha e se apaixona por ela. Inventa inúmeras situações para
vê-la e se contenta apenas com isto. Magda, a vizinha, sabe que tem um
observador, mas não desconfia de Tomek. Seu apartamento é frequentado por
diferentes homens com os quais ela tem relações sexuais, deixando o jovem Tomek
enciumado e cada vez mais determinado a fazer parte da sua vida. Esta
determinação acarreta na revelação das suas manobras de aproximação e das
espionagens realizadas através da janela. Magda então prepara uma revanche para
castigar seu indiscreto observador. Mas
este castigo acaba por revelar a distância que ambos estavam do Amor. A
castidade do jovem Tomek é ridicularizada assim como a existência do Amor. As feridas
causadas por este embate realçam outras tantas já hospedadas na alma e os
cuidados recebidos serão oportunos.
Não Roubarás
Mãe e filha são separadas em
nome da moral e bons costumes vigentes. A matriarca da família (avó) assume a
educação da neta (agora filha) e distancia ainda mais os laços diretos
(verdadeiros) entre elas (agora irmãs). Esta atitude moralista corroborada pela
sociedade implica na estruturação de mentiras, estigmas, rancores, medos... E
uma assepsia nas emoções. Esta conduta acaba por desumanizar as relações
interpessoais e indicar-lhes um personagem cultural desejado. Uma mãe deve ser
arrumadinha, casada com homem do mesmo circulo social, com certa idade e
estudos completos. Esta personagem idealizada não cabia em uma jovem
adolescente grávida do namorado (professor). É neste solo que Majka (mãe
roubada de sua condição) se organiza e foge semeando a dúvida, estremecendo
valores, implodindo a sua família... Ela busca sua identidade, mas não encontra
terreno para conhecê-la.
Não levantarás falso
testemunho
Professora de ética discute em
sala de aula com seus alunos uma situação em que um bebê está em risco de morte
por conta da moral e bons costumes da localidade. Ela ressalta que a ética,
neste caso, deve ceder lugar à mentira (falso testemunho), pois a vida humana
está acima das ponderações ou valores incidentes sobre ela. Curioso ver que
fato similar a este ocorreu no passado com esta mesma professora, então jovem
mulher católica. Na ocasião, a jovem estava amedrontada com a perseguição aos
judeus (nazismo) e as ponderações éticas e cristãs sobre a vida pareciam valer
mais que uma criança judia sob sua responsabilidade. Esta jovem mulher abandonou a criança judia
em nome destas ponderações (testemunho de fé) culturais vigente.
Não desejarás a mulher do
próximo
Um casal apaixonado se vê
diante da impotência sexual. Consideram que o Amor entre eles é mais forte que
os desejos da carne, mas esta convicção não se sustenta por muito tempo. Ambos
se atraem pelas paixões dos sentidos e, se deparam (cada qual a seu modo) com
objetos, ligações misteriosas, cartas, excitação no trabalho e códigos
secretos. Passam a viver uma rotina de segredos e mistérios até que o amante
“potente” é desvendado. É neste momento que o casal passa a se olhar por
inteiro e a constatar que o vazio experimentado (da impotência) ainda
permanecia. Esta descoberta dolorosa seria necessária para que aquelas feridas
pudessem receber cuidados.
Não cobiçarás coisas alheias
Dois irmãos se reencontram no
enterro de seu pai e descobrem a herança valiosa em selos (coleção) que acabam
de ganhar. Ao estimarem o valor deste bem, ficam completamente absorvidos por
ele. Passam a obter conhecimentos sobre a prática dos colecionadores, o mercado
(comércio) de selos, etc. Vendem seus próprios pertences para proteger o
patrimônio adquirido e acumularem mais (novas) peças. Mas, o que a princípio
parecia ser um benefício, uma dádiva, se tornou uma armadilha para suas almas.
O “espírito da coisa” se reverteu em cada vez mais acumulação de valores e na proteção
destes cobiçados itens. Para obterem
segurança deste patrimônio herdado necessitavam da aquisição de trancas,
códigos, estratégias, alarmes, e o cofre que construíram permitiu que eles próprios fossem tomados
como moeda.
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Após assistir os dez
episódios/ mandamentos, podemos notar o paralelo traçado por Kieslowski entre a
cultura (ética) e a vida humana. Para ele o sentido da vida (o espírito) não
está sempre vinculado ao sentimento calcado nos usos e costumes de um povo. A
ética e a civilidade, sim, pois estas nascem do vínculo afetivo social
predominante. Mas a base anímica alcança apenas o ser humano em sua
singularidade afetivo/ emocional. Esta carece de liberdade e de expressão. E o
homem está para além da sua alma (cativa) ou das suas conformidades culturais.
Para nos ajudar a entender
este paralelo entre alma e espírito, Kieslowski alinhava os dez episódios pela
paixão, tradição, medo, lógica, religião, ética... Cultura. Faz isto através
dos seus personagens comuns (O cão morto, o pai do menino prodígio, o médico, o
casal, o carteiro...) permitindo a comunicação entre eles e as “mazelas” de
suas almas. Mas ele também nos permite a
existência de outro personagem que está em todos os episódios (só não vi no
ultimo); um rapaz loiro, que não sofre, não trama, não fala, não se submete às
paixões, mas está vestido, participa das aulas, viaja, enfim, está como nós,
mas não está preso às nossas paixões ou à nossa ética. Podemos elucubrar que o
sentido da vida está para além do entendimento psíquico (alma) ou lógico. E que
o espírito (que é livre das amarras culturais e anímicas) nos revela algo mais
sobre nós.
Deu saudade de quando assistimos, Celo, ainda mais num texto tão rico e enriquecedor. Grande abraço.
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