sábado, 29 de outubro de 2011

Um planeta chamado Melancolia


As primeiras imagens de Melancolia já dão amostra considerável do que virá ao longo de suas mais de duas horas. Em câmera lenta (assim como tinha feito na belíssima sequência inicial de Anticristo), o mundo se esfacela: pássaros caem mortos, cavalos tombam e humanos experimentam sensações que variam da serenidade ao desespero ante o fim do mundo. Nada em larga escala, tudo num espectro mais íntimo, como que interiorizando a catástrofe anunciada pela chegada do Planeta Melancolia, que se esconde atrás do sol e ameaça chocar-se com a Terra. Ameaça não, choca-se, e isso é presenciado logo de cara, numa cena igualmente bela. Portanto, há a certeza de que a catástrofe acontecerá, e de que nada daquilo a seguir, exposto em flashback, faz muito sentido nesta perspectiva. 

Lars Von Trier divide Melancolia em dois capítulos, um para cada irmã. Justine, a moleca que se casa com um homem bem apessoado, que parece amar-lhe muito, e Claire, a mais apegada ao centro que, juntamente com o marido rico, proporciona a festa dos sonhos à irmã. Após o cataclismo, caímos então num típico festejo de casamento burguês. Neste momento, é inevitável o link com Festa de Família, de Thomas Vinterberg, apadrinhado pelo dinamarquês e um dos detonadores do Dogma 95. Da mesma maneira, na festa de Melancolia temos a câmera trôpega, muitas vezes colada aos personagens, e um movimento dramatúrgico que evidencia o que está sob a superfície da celebração. A diferença é que, enquanto no Dogma 95 se pregava a liberdade, o desapego à beleza do quadro (mesmo que esta intenção seja questionável), em Melancolia claramente este itinerário imagético é parte de um todo pictórico bastante trabalhado, pensado. 

Entre celeumas familiares e estados mentais dissonantes do que se esperaria de alguém que acabou de contrair matrimônio, Justine vê-se melancólica, como que a antecipar internamente o fim do mundo. Nada daquilo faz mais sentido, as aparências não mais protegerão e nem servirão de muito quando o astro Melancolia chocar-se com a Terra. Na passagem para os segundo capítulo, o de Claire, vemos a mulher que busca a todo custo auxiliar a irmã depressiva e sem forças, sucumbir lentamente ao desespero que se aproxima pela extinção da raça humana. Neste momento Justine desperta com sua inexplicável serenidade à beira do abismo, como se, na iminência do fim, aos sábios fosse destinada esta compreensão metafísica do desastre necessário. Estamos sozinhos, diz Justine, refutando qualquer apego a Deus nesta jornada muito particular, e na relação com a irmã, que passa de cuidadora a carente de cuidados. 

Melancolia é um filme pesado, denso, dos mais impressionantes da carreira de Lars Von Trier, justamente por oferecer uma junção de suas inquietações estéticas do passado, com este interesse mais recente pelos estados mentais extremos, apocalípticos, aliás, já bastante presentes em seu filme anterior, Anticristo. As pessoas são registradas com imagens claudicantes, a montagem de pequenos sobressaltos evidencia o jogo do cinema, ao passo que a natureza e o fenômeno aterrorizante que em breve a engolirá, são filmados com planos fluidos, reveladores da beleza do que nos acolhe e do que nos promete a destruição. Melancolia também herda de Anticristo esta reverência ao poder da mãe-terra. 

Conduzidos ainda por uma trilha sonora das mais expressivas, somos jogados no turbilhão de emoções vividas pelas duas irmãs que, num esforço de compreensão mais distante do realismo, podem ser vistas apenas como dois lados de uma mesma moeda. Melancolia extrai beleza da dor, se apoia nos personagens como quem busca salientar a agonia de um amigo, de um filho. O fim do mundo e suas implicações físicas são apenas detalhes quando percebemos a podridão humana como condutora mor da existência. Lars Von Trier não me parece pessimista, ou alguém com fetiche pelo sofrimento. Ele apenas utiliza sua lente de aumento, e o domínio impressionante que tem dos planos fabular e narrativo, para tornar evidentes nossas falhas morais e de caráter, aliadas aqui ao desespero que experimentamos em situações nas quais nos pegamos impotentes. Grande realização, Melancolia figura entre os melhores do ano.

2 comentários:

  1. Lars Von Trier e seu cinema de peso né?
    Muito legal seu texto Marcelo :)Eu esperava ansiosa por suas impressões.
    Também não acho que em "Melancolia" o diretor tenha sido um pessimista, mas sim realista.
    Concordo quando diz que foi um de seus trabalhos mais impressionantes! Assim como "Anti Cristo" e "Os idiotas", nada foi feito parecido antes.
    Eu assisti "Melancolia" duas vezes e em ambas me emocionei com aquele prólogo e a trilha que invade o cinema!

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  2. Olá, Celo!
    Realmente, grande realização.
    Foi o primeiro filme que assisti do diretor dinamarquês, porém nunca senti algo tão ruim após uma exibição. O filme toca, e toca fundo.

    Abraçossss

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