quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Os filhos das ditaduras


Ao assistir o belo filme argentino Kamchatka, me indaguei sobre as formas com as quais o cinema latino-americano registrou, e ainda registra, os conflitos ocasionados pelas ditaduras que se proliferaram na América do Sul, principalmente nas décadas de 60 e 70. No Brasil ainda não fez um grande filme sobre a ditadura, sobre o golpe militar que vitimou tanta gente. Muita tortura, presos políticos, exilados, e nada de um filme nacional abordar dignamente o tema. Houve tentativas, confesso que não vi todas, mas, por exemplo, O Que é Isso Companheiro?, por mais que seja um filme de méritos, não dá conta da alcunha de “grande”, seja pela direção frouxa de Bruno Barreto ou outros motivos que não permitem ao filme refletir com mais consistência sobre o período tão doloroso de nossa história, não tão longínquo assim. Ainda no embalo do filme argentino, comecei a pensar, agora em âmbito latino, quais os filmes dos quais gostei, que têm como pano de fundo estes golpes militares, e cheguei a algumas conclusões que os colocam dentro de uma mesma característica: falam sobre crianças.

Tentar abarcar toda complexidade política, ideológica e social que permeia uma mudança tão radical quanto a instauração de um regime ditatorial ou totalitário, me parece um erro, já que os enredamentos de cada um destes elementos são tamanhos, que não haveria como querer abraçá-los todos sem parecer superficial. Inteligentemente, alguns cineastas reduzem seus focos para histórias pessoais, como maneira de mostrar num campo de ação diminuto, o que de fato acontecia com as pessoas de um modo geral. O foco, nestes casos de filmes mais intimistas, são as pessoas, e acredito que seja isto que os sobreponham aos exemplares que se prestam pura e simplesmente ao estudo histórico dos fatos por meio da ficção. Voltando ao tema das crianças, dos filhos da ditadura, recentemente em minha passagem pelo Festival de Cinema de Gramado, uma busca filial pelo não-esquecimento do período traumático, que vitimou seus pais, além de sua própria inocência, se mostrou sintomática, pela exibição de dois documentários que estabelecem diálogo justamente por esta necessidade de não deixar a memória esmorecer. O chileno Mi Vida Con Carlos e o brasileiro Diário de um Busca, são dirigidos por crianças da época que, de alguma maneira, ou pela perda precoce do pai, ou por uma vida de andanças acompanhando os pais no exílio, e posteriormente perdendo a figura paterna, desiludida com a política e com suas ideologias, de maneira trágica, sofreram e ainda sofrem na carne os efeitos do período nefasto.

No campo da ficção, as lentes voltadas às crianças das ditaduras resultaram em filmes interessantíssimos, justamente por evitar o tom político/armamentista como fio condutor, sem com isto tornar suas narrativas mais palatáveis ou “fofas”. O brasileiro O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias me parece o mais pálido de uma boa leva recente. Mesmo com intenções louváveis, com narrativa interessante que mostra a infância dos filhos dos perseguidos políticos, que viviam sem saber os motivos das ausências intermináveis de pais exilados ou mesmo mortos, o filme se apresenta insípido, singelo demais. Machuca, filme chileno muito laureado desde sua estreia, mostra os abismos sociais entre duas crianças amigas, emolduradas pelos conflitos que marcaram a transição a fórceps do governo Salvador Allende para a traumática ditadura Augusto Pinochet. Este sim é um belíssimo filme, pois dá conta de desenvolver seus personagens de maneira íntima, colocando-os em perspectiva sobre um plano de fundo conflituoso, dando a ele enfoque paralelo que agiganta a história contada. Já Kamchatka, que formaria rico painel com os dois acima citados, fala sobre uma família que precisa largar tudo para morar num sítio afastado do centro nervoso e politicamente efervescente de Buenos Aires. Todo enfoque é direcionado aos filhos, o mais velho, que entende um pouco do que acontece e encontra alento nas histórias de Houdini, aquele que de tudo escapava, e o mais novo que parece um tanto quanto alheio a realidade, mesmo que sofra os efeitos do meio, fazendo xixi na cama todas as noites. Em Kamchatka sabemos pouco ou quase nada da política, dos conflitos ideológicos, a não ser por uma que outra notícia de alguém que foi pego e assassinado, ou pela tensão muito bem retratada através dos grandes Ricardo Darín e Cecília Roth, intérpretes dos pais da família. É um filme muito bonito, portador de um triste epílogo, que consegue materializar numa simples imagem a dor de quem cresceu naquela época, e que traz as cicatrizes de uma batalha desigual.

O período das ditaduras poderia ser explorado pelo cinema latino-americano, como bem faz o europeu e o americano em relação às grandes guerras. Claro, os orçamentos são muitas vezes entrave, mas como o período funesto da história latina é caracterizado por brigas políticas, embates sim, mas não em grandes escalas de ação, como numa guerra, soa mais do que interessante e acertado procurar saber, por meio de histórias intimistas, como estas situações afetaram as pessoas. Neste contexto, não me parece estranho que se busque o retrato infantil da época, afinal de contas, mesmo que alguns morram, sejam torturados e nunca mais voltem ao seio familiar, é nelas, nas crianças, que o conflito se configura como uma marca profundamente enraizada e indelével.

2 comentários:

  1. Olá Celo!

    Achei bem interessante e válida a proposta de encontrar uma unidade nos filmes que você mencionou. Vejo tais filmes quase enquadrados em um subgênero, ainda que seja também uma forma de abrandar cenários tão horríveis como o da ditadura - através de olhos que não podem visualizar a situação por completo.

    Parabéns pela análise guri!

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  2. Olá, Celo!
    Belo texto. Tem razão, esse período histórico, apesar de rico, possui poucas obras de valor artístico no cinema brasileiro.

    Abraçosss

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